Como citar:
Cruz, ICF da O desafio da democratização do acesso à Universidade e o debate sobre cotas para negros. Boletim Informativo da ABEN (Nacional), p. 1 – 2, 08 dez. 2004.
A grande imprensa afinal resolveu noticiar e opinar (negativamente) sobre a reserva de vagas para as pessoas negras nas universidades e, assim, o grande público fica, finalmente, informado, ou deformado, sobre uma das inúmeras batalhas que o movimento negro e social tem travado no sentido de tornar este país verdadeiramente democrático e justo para todos e todas. Mas, para superar o preconceito, nada melhor do que a informação. Foi com informação, que o movimento negro conseguiu colocar na agenda política do país esta proposta. Não vai ser com desinformação (ou contra-informação) que os que ainda acham que o Brasil é uma democracia racial vão derrubá-la.
No sentido de contribuir para este debate, relacionarei as razões da reserva de vagas (cotas) para negros(as), visando a democratização do acesso à universidade, e as implicações disto para as instituições. A reserva de vagas, ou cotas como preferem alguns, é um tipo de ação política afirmativa dirigida para grupos não-hegemônicos, isto é, que estão excluídos das relações de poder. O objetivo é promover a cidadania e a inclusão social, possibilitando a garantia de todos os(as) cidadãos brasileiros(as) aos direitos consagrados na Constituição Federal e na legislação ordinária.
As razões que levaram o Brasil a adotar a ação afirmativa para a população negra são algumas das que se seguem:
Os africanos escravizados e seus descendentes no Brasil há mais de 500 anos lutam por sua liberdade, pelas mais diversas formas, e, mesmo após a extinção da escravatura, continuam lutando por sua emancipação política e pelo ressarcimento dos crimes e danos cometidos, seja na forma de indenização (movimento de reparação); seja na forma de políticas de ação afirmativa.
Diante das legítimas pressões dos movimentos sociais nacionais e internacionais, o Estado brasileiro reconhece, ao menos em fóruns internacionais, que a ideologia racista que sustentou quase 400 anos de holocausto (tráfico, seqüestro, tortura, desagregação familiar, analfabetismo e trabalho escravo) de africanos não se extinguiu com as alforrias, nem com a abolição. Após 1888, o racismo se re-estruturou em uma política discriminatória cuja estratégia de implantação foi a assimilação cultural, visando a “invisibilização” da população negra.
O Brasil reconhece que a o tráfico e a escravidão são crimes de lesa humanidade e, portanto, imprescritíveis. O Brasil em sua constituição reconhece ainda que o racismo é crime inafiançável.
Isto posto, vemos que a política de reserva de vagas para negros nas Universidades, assim como o Programa de Ações Afirmativas, se ampara na Constituição Federal, nos padrões internacionais de respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos e nos compromissos assumidos pelo Brasil ao ratificar o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, a Convenção n;111 da Organização Internacional do Trabalho- OIT,que trata da discriminação no emprego e na profissão, e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência; considerando ainda as declarações, plataformas e programas de ação das conferencias mundiais sobre direito humanos (-Viena,1993)-; desenvolvimento social -(Copenhague,1994); direitos da mulher (Pequim, 1995) e de combate ao racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata (-Durban 2001), entre outros tratados. Conseqüentemente, a reserva de vagas se insere na institucionalização do Programa Nacional dos Direitos Humanos – PNDH, que prevê a adoção de medidas compensatórias especiais que acelerem o processo de construção da igualdade, sem qualquer discriminação no que se refere a gênero, raça, etnia e condição física e mental.
A dificuldade na operacionalização desses acordos internacionais, na forma de reserva de vagas para negros nas universidades e demais instituições, e o desconforto provocado no grupo hegemônico propiciaram a explicitação do racismo à brasileira. A proposta está tramitando no Congresso Nacional para ser negociada e não para ser retirada da pauta. Muitas universidades públicas (UERJ, UNEB, UFBA, UNIFESP, UNICAMP, UNB, entre outras) já adotaram a reserva de vagas, mas muitas destas estão longe de reconhecer que a ação afirmativa é para a população negra e incluíram na proposta a extensão da política para os alunos oriundos da escola pública (reduzindo, obviamente, a cota da população negra para, assim, beneficiar o branco pobre que já é o principal beneficiário das políticas universalistas). Muitas outras instituições fazem o discurso da meritocracia que funciona muito bem para barrar o acesso do(a) “outro(a)” ao privilégio, mas não o acesso de quem já está no poder, mesmo quando não possui o mínimo de qualidade (a universidade recebe sem vestibular: alunos estrangeiros, ou então militares e seus parentes quando são transferidos, ou, em passado recente, filhos de fazendeiros pela “lei do boi”). Tem ainda aqueles (e aquelas) que são contrários porque alegam queda da qualidade da Universidade. Estes fazem questão de ignorar que o candidato “cotista” faz vestibular e pode ser eliminado se não obtiver a nota mínima que é exigida a todos(as) candidatos(as).
Em síntese, esta discussão é uma boa oportunidade para que cada um reflita sobre seus preconceitos e estereótipos em relação às pessoas negras (inclusive nos cenários da atenção à saúde que não está isento de atitudes discriminatórias na relação profissional-cliente ou na relação interprofissional) e reconheça que o papel da universidade pública é produzir e disseminar conhecimento com a colaboração de toda a sociedade e para toda a sociedade que a sustenta com seus impostos escorchantes. Vale observar que, o movimento das reparações avaliou que o Estado escravocratas deve a cada negro(a), no mínimo, US$ 110 mil, como indenização pelo crime histórico de escravidão. Mas, o movimento negro brasileiro, como um todo, entende que não há dinheiro que repare o holocausto em que ainda vivemos (afinal, morremos mais por homicídios, parto, diarréia, hipertensão e outras causas preveníveis) e optou pela luta por ações afirmativas para emancipação política e econômica da população negra brasileira. Como a Universidade pública é um bem social, uma política de democratização do acesso a este bem é tanto uma política de ação afirmativa quanto uma política de distribuição da riqueza para 50% dos(as) brasileiros(as), ou seja, nós, os(as) negros(as).
Publicado originalmente no Boletim Informativo da ABEN (Nacional), p. 1 – 2, 08 dez. 2004. Republicado no Boletim NEPAE-NESEN.