No que se refere à populações socialmente vulneráveis, como os conceitos Dignidade Humana e Diagnóstico de Enfermagem se conectam no encontro clínico?
Um dos objetivos do processo de ensino-aprendizagem-avaliação deste diagnóstico é demonstrar a experiência de testemunha ética (bystander) como um cuidado de saúde, buscando explicar como o poder e o privilégio operam as desigualdades sociais entre o grupo hegemônico (provedor[a]) e a pessoa/população socialmente vulnerável (usuária), colocam a pessoa em risco de comprometimento da dignidade humana, bem como comprometem a promoção da equidade no SUS
No que se refere ao diagnóstico Risco de comprometimento da dignidade humana, as pesquisas em geral o identificam em pessoas sob cuidados paliativos, por exemplo. Contudo, este risco também pode ser previsto pessoas pertencentes a grupos populacionais estigmatizados ou socialmente vulneráveis devido aos determinantes sociais ou interseccionalidades.
Como estratégia de ensino-aprendizagem-avaliação, para esta experiência utilizo o estudo de caso, fazendo uso da simulação com paciente padrão, sempre que possível, com a colaboração do Coletivo Transparente de Teatro (coletivo de artistas e militantes LGBTQ+ que acredita na arte e na cultura.).
Com base na pesquisa de pesquisa de Madeiro;Rufino (2016), criei uma personagem e um monólogo. Esta personagem durante todo se porta como a pessoa usuária da saúde no (des)encontro clínico. Criei também um desafio clínico, a saber: “Doença estranha: qual a causa?” A cada etapa do processo de trabalho, estudantes e paciente padrão validam ou invalidam os dados que fundamentam o diagnóstico, bem como seu tratamento e avaliação do resultado.
O risco de comprometimento da dignidade humana (NANDA [cód 00174]/CIPE-Portugal [10023803], CIPE-Brasil [10023803 – risco de dignidade prejudicada]) é definido como “vulnerabilidade à perda percebida de respeito e honra que pode comprometer a saúde”.
Quanto aos fatores causais para este diagnóstico, relaciono na figura a seguir as causas aos determinantes sociais.
Uma estratégia de ensino sobre o processo de raciocínio clínico para chegar à formulação deste diagnóstico, sugere que há etapas a cumprir e indicadores, ou seja, “sinais e sintomas” a serem buscados junto à pessoa, família, comunidade, entre outras fontes de dados.
A primeira etapa a cumprir é o histórico de enfermagem. Nesta etapa, está incluída a observação, por exemplo, para a obtenção de dados necessários à fundamentação do diagnóstico Risco de comprometimento da dignidade humana. Observe a cena:
Na cena acima, posso inferir que, no mínimo, cada paciente (usuária[o] de saúde) está em risco de comprometimento da dignidade humana devido à percepção de invasão da privacidade e/ou exposição do corpo e/ou tratamento desumanizante, por exemplo
No histórico de enfermagem, também está incluída a entrevista clínica compassiva/assertiva. Com base no referencial do cuidado centrado na pessoa, há que se fazer perguntas que busquem dados além da doença. No que se refere ao risco de comprometimento da dignidade humana, é sugerida a seguinte abordagem:
Ao se apresentar, você neutraliza uma potencial causa do risco de comprometimento da dignidade humana: percepção de intromissão por provedores(as) de saúde (profissionais, gestores[as], etc).
Como parte inicial da entrevista clínica, recomenda-se fortemente o que se segue:
Perguntar o nome não só como um dado a ser registrado no prontuário ou só para conferência (relevante para a segurança!), mas para estabelecer uma relação pessoa-pessoa é fundamental para prevenir o risco de comprometimento da dignidade humana.
Com a finalidade de buscar a causa do risco de comprometimento da dignidade humana, seguem algumas sugestões de perguntas para a entrevista clínica compassiva:
- pessoa/população pertencente a grupo socialmente vulnerável ou estigmatizado
– “No SUS, há a PNSIPN para enfrentar a discriminação racial, eu agora rotineiramente pergunto a todos os meus pacientes sobre sua raça ou cor. Como você (Sr ou Sra) classifica sua raça/cor: branca, preta, parda, amarela ou indígena?” - Atitude negativa dos(as) profissionais e/ou trabalhadores(as) e/ou gestores(as) ou provedores(as) de saúde em relação à(ao) paciente ou usuária(o) da saúde
-“Alguma vez vivenciou qualquer situação de discriminação (gênero, cor, etnia, orientação sexual, religião, etc) numa Unidade de Saúde?” - autoridade da pessoa para o consentimento informado
– “Sr. José, a minha aluna pode assistir a nossa consulta?” - incongruência cultural
-“O que eu preciso saber sobre você (Sr ou Sra) como pessoa para lhe dar o melhor cuidado possível? Rem alguma restrição alimentar, por ex?”
– “O SUS tem agora uma área de práticas de medicina tradicionais de tradição africana e indígena, assim como a colaboração de curandeiros, mateiros, entre outros sistemas diferentes da medicina ocidental. Gostaria de saber se você (Sr ou Sra) frequenta cuidador(a) tradicional ou se é membro de povo ou comunidade tradicional (quilombolas, terreiro, caiçaras, povos ciganos/Romani, entre outros).” - percepção de tratamento desumanizante
– “De 0-10, quão confortável você (Sr ou Sra) está?” - percepção de humilhação
– “Durante o cuidado ou conversação, os(as) profissionais lhe olham nos olhos?” - percepção de intrusão e/ou invasão da privacidade pelos(as) profissionais de saúde
– “Dona Maria, tem objeção quanto ao sexo da pessoa que pode fazer sua higiene?” - rotulação estigmatizante
– “Dona Maria da Silva, é este seu nome? Posso ver sua pulseira de identificação?”
– “Eu tenho que fazer algumas perguntas que eu faço para todos os meus pacientes. Estas perguntas podem parecer um pouco indiscretas. Por exemplo, eu preciso perguntar sobre sua atividade sexual. Deseja informar orientação sexual?”
Outras perguntas pode e devem ser feitas durante o histórico de enfermagem, mas para identificar o diagnóstico, basta um único fator causal. Na perspectiva do cuidado centrado na pessoa, recomenda-se que diagnóstico, resultado e plano sejam validados pela pessoa. O resultado básico esperado é que o(a) paciente e família expressem satisfação com o nível de respeito em todas as interações dentro do Sistema de Saúde.
Para ajudar no planejamento de intervenções, observe na figura a seguir algumas sugestões de ações com foco na pessoa, família, comunidade e/ou sistema.
Todavia, há um senso de urgência quando a causa do risco de comprometimento da dignidade humana se deve à atitude negativa dos(as) profissionais e/ou trabalhadores(as) e/ou gestores(as) ou provedores(as) de saúde em relação à(ao) paciente ou usuária(o) da saúde. Neste caso, o que fazer? Atuar como testemunha ética (bystander), intervenção, no meu entender, de defensoria com foco na pessoa, ou ficar só olhando?
No processo ensino-aprendizagem-avaliação sobre o enfrentamento do risco de comprometimento da dignidade humana em razão de atitudes negativas de provedores(as) da saúde, explico que podemos ser testemunhas ou espectadores(as) de violências em qualquer momento dentro de uma instituição de saúde. O desenvolvimento da habilidade de bystander (testemunha ética) é, no meu entender, uma habilidade profissional a ser desenvolvida para que se possa desempenhar o papel necessário para a garantia da dignidade do(a) paciente ou da família ou da comunidade ou mesmo da população socialmente vulnerável nas interações com o SUS.
Se diante de uma cena de assédio, discriminação ou qualquer outra forma de violência (iatrogenia, omissão, etc), um indivíduo decide só olhar, podemos dizer que é um espectador, isto é, um espectador(a) é aquele ou aquela não envolvido(a) diretamente na cena e opta por olhar para o outro lado, fingir ignorância se chamado, entre outros comportamentos. Por outro lado, a testemunha, aqui a(o) enfermeira(o), pode tomar uma decisão tática com base nas circunstâncias – intervir, com segurança, na cena ou falar/denunciar mais tarde.
Testemunhar Eticamente – o cuidado da(o) enfermeira(o) para apoiar a pessoa que está em risco de comprometimento da dignidade humana – em síntese na figura a seguir:
Cabe enfatizar no processo ensino-aprendizagem-avaliação sobre Testemunhar Eticamente que independentemente de como se decide intervir, deve-se sempre ficar com a pessoa em risco de dignidade humana comprometida até que ela esteja segura, bem como informá-la sobre suas opções para acessar um serviço de apoio ou apresentar uma reclamação. Testemunhar Eticamente baseia-se nos 5Ds.
A figura acima sintetiza o (ser) Direto(a) significa intervir, com segurança, focalizando a situação.
É importante destacar que às vezes, esses tipos de situações podem ficar intensas, e o(a) agente que está causando o dano pode começar a gritar ou se tornar fisicamente agressivo(a). Faz parte do processo ensino-aprendizagem-avaliação manter distância social, bem como gerenciar sua própria resposta quando testemunhar alguém colocando o(a) paciente em risco de comprometimento da dignidade humana.
Dos 5Ds de Testemunhar Eticamente, Delegar (ou delegação) significa obter ajuda de outra pessoa (a chefia, por ex), analisar a situação para avaliar o risco e determinar a melhor forma de intervir, bem como, em seguida, confiar tarefas a outras pessoas ao seu redor.
Na imagem acima, um exemplo de resposta assertiva à situação de violência, delegando à chefia a incumbência de interromper o dano e proteger o(a) usuário(a) de saúde.
Na figura a seguir, uma demonstração do cuidar como testemunha ética.
Como parte do processo ensino-aprendizagem-avaliação, a estratégia da Demora é um recurso pós incidente quando o(a) provedor(a) de saúde conversa com o(a) paciente que foi prejudicado(a). Isso é essencial porque mostra à pessoa que ela e sua diversidade (gênero, raça/cor, religião, etc) são valorizados. Este aspecto da intervenção Testemunhar Eticamente também pode significar continuar educando a nós mesmas(os) e aos que nos rodeiam sobre novos passos para sermos solidárias(os) com os grupos populacionais estigmatizados.
Outra estratégia a ser demonstrada é a distração. Neste caso, o(a) provedor(a) adota uma abordagem indireta para “desescalar” a situação. Distrair a atenção do(a) profissional que está causando o dano para dar à pessoa que está sofrendo tempo para se recompor ou, se pertinente, se afastar.
Parte do processo ensino-aprendizagem-avaliação sobre Testemunhar Eticamente, Documentar (ou documentação) significa que se alguém já está intervindo e você, provedor(a), acredita que o(a) agente do dano está numa escalada de violência, você pode documentar a situação.
Testemunhar Eticamente é um cuidado de saúde que visa “desescalar” a violência. Portanto, é recomendável que no processo ensino-aprendizagem avaliação destas habilidades que a atitude correspondente seja: Nomear o crime sem julgar quem age… Explicitar o comportamento específico que é prejudicial: racismo, misoginia, transfobia, etc.
Com base neste referencial, durante o processo ensino-aprendizagem-avaliação, destaca-se que muitas vezes, no momento, o(a) provedor(a), causa o risco de comprometimento da dignidade humana, pode não estar ciente de como está agindo. Nomear o comportamento dá à pessoa que está causando o dano a oportunidade de identificar sua atitude e se corrigir. Para proteger o(a) paciente e “desescalar” a violência real ou simbólica, deve-se evitar “rotular” o(a) agente do dano de racista, misógino ou qualquer outro adjetivo. Tampouco usar sarcasmo ou listar suposições sobre os motivos dessa pessoa para agir danosamente.
A etapa de avaliação ou evolução no processo de trabalho deve ir além da verificação do grau de satisfação da pessoa usuária de saúde com o atendimento recebido. Para descontruir o racismo e demais ideologias opressivas nos processos e na cultura institucional é preciso também estabelecer metas de equidade para os resultados dos serviços do SUS. Se a instituição tem estas metas estabelecidas, esta é a hora de verificar se a equidade está em processo no ponto do cuidado. Um indicador objetivo da qualidade do encontro clínico pode ser a dor ou o conforto. Neste sentido, pergunte ao(à) paciente regularmente sobre os níveis de dor ou conforto. Igualmente, pergunte sobre a prontidão no atendimento.
Vários outros indicadores são propostos para avaliar a qualidade do encontro clínico e, consequentemente, o grau de risco de comprometimento da dignidade humana. A saber: tratamento pelo nome, conhecimento do nome e função dos(as) provedores(as), contato visual, tomada de decisão compartilhada sobre o cuidado de saúde, proteção da privacidade, da confidencialidade e do pudor/modéstia (licença para tocar o corpo), entre outras medidas sugestivas de respeito e proteção da dignidade.
Por fim, julgo que neste relato fica registrado o entendimento sobre o risco de comprometimento da dignidade humana como um diagnóstico potencial para grupos socialmente vulneráveis, bem como a descrição de algumas estratégias de ensino clínico para sua identificação e tratamento. Como sugestão de tratamento, neste relato fica registrada a experiência ou demonstração ou simulação de testemunha ética (bystander) como um cuidado de saúde, focalizando o grupo hegemônico (provedor[a]) e a pessoa/população socialmente vulnerável (usuária). Esta estratégia já foi testada com sucesso na disciplina Diversidades, Equidade e Cuidados de Saúde, na Universidade Federal Fluminense, e no curso de atualização Planejamento Reprodutivo: como garantir os Direitos Reprodutivos e Direitos Sexuais, na ENSP/Fiocruz, a convite da Profa. Dra. Rita Costa.
Mensagem chave: A implantação e implementação de políticas de equidade no SUS exigem que sejam revisados os processos de trabalho ideologicamente opressivos. Igualmente é preciso revisar o processo ensino-aprendizagem-avaliação na área da saúde de modo que sejam incluídas experiências ou simulações sobre o encontro clínico centrado na pessoa (e sua diversidade), baseado em evidência e em equipe interprofissional.
Referências de interesse:
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Como citar:
Cruz, Isabel Risco de comprometimento da dignidade humana: quando a causa é o sistema de saúde. A solução também. NEPAE/UFF. Niterói, 27/05/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2764