O Conselho Estadual dos Direitos da Mulher CEDIM/RJ desenvolve um conjunto de ações, dentre
estas, a “Preservando Vidas – Violência Obstétrica: A dor que querem calar”. É uma estratégia para sensibilizar profissionais de saúde para condução nos municípios de Rodas de Gestantes. A Roda de Conversas com Gestantes, por sua vez, é uma ação que contribui com o enfrentamento à violência obstétrica e com a redução da mortalidade materna, uma dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) do milênio.
Assim, no dia 22 de novembro de 2022, na sede do CEDIM RJ, das 9 às 17 horas, aconteceu o seminário “VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA: CONQUISTAS, RETROCESSOS E DESAFIOS”, tendo sido convidada pelo CEDIM, para uma das mesas do evento. Neste texto, apresento uma síntese do trabalho.
No meu entendimento, o patriarcado é a ideologia que sustenta a violência obstétrica. Segundo Costa (2018) “a internalização e naturalização de normas que expressam a dominação dos homens sobre as mulheres, isto é, o reconhecimento dos papéis que cada um deve desempenhar, de forma a ter aprovação pela coletividade. (…) A domesticação, portanto, foi infletida como tendência a um ser absolutamente assexuado.” Sob o viés do patriarcado, a violência obstétrica foi naturalizada no período perinatal como a forma de dominação social sobre as pessoas com útero.
Neste sentido, a pergunta que cada profissional e gestor(a) de saúde deve se fazer é:
Gita et al (2018) observam que além do desrespeito e abuso, há práticas obstétricas que simplesmente priorizam as necessidades ou conveniência dos(as) provedores(as) de saúde (profissionais e gestores[as]) ou são justificadas com base na segurança e, portanto, em tese não poderiam ser reconhecidas como violência obstétrica. Mas, os autores sugerem que nestes casos, as taxas populacionais sobre o procedimento em foco podem ser usadas no nível institucional para determinar se o procedimento foi realizado tendo a pessoa usuária de saúde como maior beneficiária.
O que realmente queremos (usuárias[os], provedores[as] e gestores[as] de saúde)?
Segundo a Joint Commission International (JCI), líder mundial em certificação de organizações de saúde, o cuidado perinatal com qualidade e segurança para a pessoa usuária da saúde pode ser resumido assim:
Para a desconstrução do patriarcado, uma secular ideologia que se expressa como violência obstétrica, é preciso lançar mão de uma gestão criativa das instituições de saúde.
Zeferino et al (2019) explicam que Gemba é o local onde os processos realmente acontecem. Ainda que a privacidade seja um direito da pessoa gestante, julgo que provedores(as) e gestores(as) da saúde precisam ver o que está acontecendo no período perinatal em suas instituições e contrastar o que é visto com o que é preconizado por consagradas evidências científicas. Os autores explicam ainda que sobre o evento Kaizen que traduzido do japonês significa “melhoria contínua”. Assim, para o enfrentamento da violência obstétrica no ponto do cuidado, salvo melhor juízo, é preciso estabelecer uma gestão que conheça in loco cada setor do período perinatal, bem como se comprometa da manter a cada turno a melhoria contínua na prestação do cuidado perinatal.
Este evento faz parte da ação que se justifica devido ao fato do Brasil ter sido condenado, em 2011, pela Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW), face à morte materna de Alyne Pimentel em 2002 (Catoia et al, 2020).
E também pelo fato do Estado Brasileiro ter o dever de implementar políticas públicas para reduzir a mortalidade materna, o que não vem acontecendo.
Quanto à Instituição de Saúde ( nível 1)
Para casos identificados ou de alto risco a instituição fornece cuidado direto ou estabiliza e transfere com segurança as mães que necessitam de cuidados além o escopo dos serviços fornecidos pela organização?
A instituição oferece suporte de outros departamentos como anestesia, suporte respiratório, radiologia, ultrassonografia,
laboratório e banco de sangue com atendimento 24 horas por dia, 7 dias por semana?
Liderança de enfermagem com expertise perinatal é responsável pela gestão do cuidado de enfermagem perinatal?
Indicadores de cuidado respeitoso: como estamos?
•Profissionais vêm rapidamente quando chamados?
•Cumprimentada(o) respeitosamente quando chegou à maternidade?
•Perguntada(o) se teve alguma dúvida durante a sua estadia na maternidade?
•Apoiada(o) durante o trabalho de parto de maneira amigável?
•Encorajada(o) a andar ou assumir diferentes posições durante o trabalho de parto?
•Encorajada(o) a consumir líquidos/alimentos durante o trabalho de parto?
•Ajudada(o) a usar as instalações sanitárias?
•Capaz de se comunicar com seus parentes ou outras pessoas que a(o) acompanharam?
•Recebeu qualquer ajuda para reduzir a dor?
•Excelente/muito bom linguajar usado pelos(as) profissionais com as(os) pacientes?
•Excelente/muito boa a privacidade (e/ou modéstia) durante o parto?
•Excelente/muito boa a informação prestada sobre medicamentos e procedimentos?
•Excelente/muito boa a limpeza da instituição?
•Se você já teve outros partos, rateie este parto comparado com o anterior nesta instituição: () melhor () igual () pior.
Indicadores de cuidado: como estamos?
•Gestante não atribuída a um(a) médico(a) específico(a)?
•Desconexão entre o atendimento ambulatorial (pré-natal) e o atendimento hospitalar (parto e outras emergências)?
•Falta de coordenação entre os departamentos do hospital?
•Falta de trabalho em equipe e opinião de especialista?
•História clínica prévia não considerada na triagem – a gestante torna-se paciente de “primeira vez”?
•Médicos(as) , enfermeiras(os) obstetrizes e especialistas de plantão insuficientes?
•Residentes sem supervisão a cargo de casos de alto risco?
•Chefias designadas por outras razões que não o mérito e/ou expertise
•Supervisão do cumprimento das normas e diretrizes por parte dos(as) profissionais? •Alta prematura da puérpera do hospital?
Indicadores de força de trabalho: como estamos?
•Enfermeiras(os) graduadas(os), prontamente disponíveis 24/7, adequadamente treinadas(os) e qualificadas(os) com competências adequadas ao nível de cuidado perinatal, conforme demonstrado por documentação de competência de enfermagem?
•Cada parto assistido por pelo menos um(a) profissional qualificado(a) (parteira, obstetriz, obstetra) e uma enfermeira(o) graduada(o) adequadamente treinada(o) e qualificada(o) com competências adequadas ao nível demonstrado pela documentação de competência de enfermagem?
•Médico(a) com privilégios para realizar cesariana de emergência prontamente disponível em todos os momentos? •Anestesistas para analgesia de parto e anestesia cirúrgica prontamente disponíveis 24/7?
Quem é responsabilizado(a) pela violência obstétrica?
•Na Venezuela, por exemplo, consideram-se atos constitutivos de violência obstétrica os efetuados por profissional da saúde, consistentes em:
1 – Não atender oportuna e eficazmente as emergências obstétricas.
2- Obrigar a mulher/pessoa a parir em posição supina e com as pernas levantadas, existindo meios necessários para a realização do parto vertical.
3- Impedir a permanência do recém-nascido com a mãe, sem causa médica justificada, negando-a a possibilidade de carregá-lo e amamentá-lo imediatamente ao nascer.
4 – Alterar o processo natural do parto de baixo risco, mediante o uso de técnicas de aceleração, sem obter o consentimento voluntário, expresso e informado da mulher/pessoa.
5 – Praticar o parto por via cesárea, existindo condições para o parto natural, sem obter o consentimento voluntário, expresso e informado da mulher/pessoa. •Na Venezuela, em tais casos, o tribunal deve impor ao responsável ou à responsável uma multa duzentas e cinquenta (250 U.T.) a quinhentas unidades tributárias (500 U.T.), devendo remitir cópia autenticada da sentença condenatória ao respectivo colégio ou instituição profissional, para efeitos de procedimento disciplinar correspondente
No Brasil, há o projeto de Lei no 7.633, de 2014, de Jean Willis, sobre as disposições concernentes à mulher/pessoa durante sua gravidez, bem como sobre as condutas, procedimentos e atos abusivos adotados pelos (as) profissionais da saúde que caracterizam a violência obstétrica . O PL mostra que estes atos violam o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e as vítimas desse tipo de violência podem ter reparação do dano que lhe foi causado.
•§ 1º – Os e as profissionais de saúde que praticarem atos de violência obstétrica ficam pessoalmente sujeitos à responsabilização civil e criminal decorrente de suas condutas.
•O artigo 17 do Projeto de Lei no 7.633, de 2014, dispõe sobre possibilidade de os estabelecimentos de saúde onde ocorrerem a violência obstétrica serem penalizados, por estarem infringindo a legislação sanitária federal.
•[…] dado a concretização do fato, cabe a vítima o direito de reparação do dano por meio da responsabilidade civil, já que as condutas que caracterizam a violência obstétrica ainda não foram tipificadas no ordenamento jurídico brasileiro.
•O PL 2.082/2022, da senadora Leila Barros (PDT-DF), prevê pena de detenção que pode variar de três meses a um ano. Fonte: Agência Senado
OBS: há um projeto de lei no Estado do Paraná que prevê o seguinte:
“O descumprimento desta Lei sujeitará:
I – os estabelecimentos ao pagamento de multa no valor de 1.000 UPF/PR (mil vezes a Unidade Padrão Fiscal do Paraná), aplicada em dobro em caso de reincidência; e
II – os profissionais de saúde ao pagamento de multa no valor de 100 UPF/PR (cem vezes a Unidade Padrão Fiscal do Paraná), aplicada em dobro em caso de reincidência.”
Mensagens chave
•Reconhecer que o patriarcado é a causa violência obstétrica
• Atuar junto ao Legislativo para tipificação da violência obstétrica como crime, responsabilizando criminalmente o(a) agente do dano (CPF), bem como as instituições (CNPJ).
•Reiterar o cuidado perinatal com base em evidência científica
•Gemba Kaizen: controle social, profissionais de saúde e gestores(as) monitorando in loco o cuidado perinatal
Referências:
Costa, Marta Nunes da Transformando o patriarcado? O papel da luta feminista na reconfiguração das categorias marxistas. Trans/Form/Ação [online]. 2018, v. 41, n. 3 [Acessado 13 Novembro 2022] , pp. 125-144. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/0101-3173.2018.v41n3.07.p125>. ISSN 1980-539X. https://doi.org/10.1590/0101-3173.2018.v41n3.07.p125.
Gita Sen, Bhavya Reddy & Aditi Iyer (2018) Beyond measurement: the drivers of disrespect and abuse in obstetric care, Reproductive Health Matters, 26:53, 6-18, DOI: 10.1080/09688080.2018.1508173
Zeferino EBB, Sarantopoulos A, Spagnol GS, Min LL, Freitas MIP de. Value Flow Map: application and results in the disinfection center. Rev Bras Enferm [Internet]. 2019 Jan;72(1):140–6. Available from: https://doi.org/10.1590/0034-7167-2018-0517
Catoia, Cinthia de Cassia, Severi, Fabiana Cristina e Firmino, Inara Flora CiprianoCaso “Alyne Pimentel”: Violência de Gênero e Interseccionalidades. Revista Estudos Feministas [online]. 2020, v. 28, n. 1 [Acessado 15 Novembro 2022] , e60361. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n160361>. Epub 09 Mar 2020. ISSN 1806-9584. https://doi.org/10.1590/1806-9584-2020v28n160361.
Kujawski SA, Freedman LP, Ramsey K, Mbaruku G, Mbuyita S, Moyo W, Kruk ME. Community and health system intervention to reduce disrespect and abuse during childbirth in Tanga Region, Tanzania: A comparative before-and-after study. PLoS Med. 2017 Jul 11;14(7):e1002341. doi: 10.1371/journal.pmed.1002341. PMID: 28700587; PMCID: PMC5507413.
Como citar:
Cruz, ICF da Desconstruindo o patriarcado: criminalização da violência obstétrica. NEPAE/UFF. Niterói, 25/06/2023. https://nepae.uff.br/?p=3084