Este estudo, feito em 2008 e que publico aqui, agora, teve como motivação inicial o convite da Deputada Estadual Beatriz Santos, Presidente da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional para tratar do tema em Audiência Pública: “DIA DA MULHER NEGRA, LATINO-AMERICANA E CARIBENHA”. Com muita honra aceitei o convite pois não poderia perder a oportunidade de discutir com os(as) representantes do povo do Estado do Rio de Janeiro, os (as) profissionais e gestores (as) da saúde sobre a condição das mulheres negras no Brasil e no mundo e, em especial, no nosso estado.
Afinal, esta Assembléia assume a sua a obrigação de monitorar as condições de saúde/doença, bem-estar e mal-estar das mulheres negras, assim como a ajudar na implantação de políticas afirmativas que ajudem na promoção da saúde das cidadãs e na superação dos problemas. A celebração do “DIA DA MULHER NEGRA, LATINO-AMERICANA E CARIBENHA” tem ainda relevância social por propiciar a explicitação das condições de desigualdade em que vivem as mulheres negras, quando comparadas aos demais estratos sociais, devido à sua cor ou grupo étnico e por dar subsídios para os gestores e profissionais de saúde formular políticas que favoreçam o acesso ao cuidado e à qualidade do mesmo.
O Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha foi criado em 25 de julho de 1992, durante o I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-Caribenhas, em Santo Domingos, República Dominicana. Estipulou-se que este dia seria o marco internacional da luta e da resistência da mulher negra. A data de 25 de julho é uma referência para avaliarmos a ampliação e o fortalecimento das organizações de mulheres negras e igualmente verificarmos a eficácia na implementação de estratégias dirigidas para a inserção de políticas para o enfrentamento ao racismo, sexismo, discriminação, preconceito e demais desigualdades raciais e sociais.
É, portanto, um dia em que se celebra uma irmandade, mas aproveito a oportunidade de falar para a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro e dizer que este também é um dia que se abre para balanço sobre as parcerias, as conquistas e perdas durante a luta, os avanços e retrocessos sobre a identidade da mulher negra fluminense, em especial, e sua cidadania.
Uma mulher negra do Estado do Rio de Janeiro: Sra. Edna Ezequiel
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Há um tempo atrás publiquei um estudo sobre a condição da mulher negra no estado do Rio[i], todavia, hoje apresento não os números desta pesquisa, mas um estudo de caso no qual apresento o contexto de vida e o perfil de uma cidadã: a Sra. Edna Ezequiel.
Considero necessário dar uma rápida explicação sobre minha visão profissional de de saúde e bem-estar. Compartilho a teoria da salutogênese[ii] que considera que cada pessoa tem sua própria definição de saúde e bem-estar baseada em suas expectativas e valores.
Assim, se a pessoa (e, por vezes toda uma sociedade) se considera saudável apenas porque está, no momento, livre de doença, isto evidencia que o seu conhecimento sobre saúde e bem-estar é escasso e, até por razões de saúde pública, precisa ser ampliado.
Para manter ou aumentar a saúde e o bem-estar, a pessoa busca ou recebe apoio ou incentivo formal (instituição de saúde, escola) e informal (amigos, líderes espirituais) para a mudar comportamentos, aderir a terapêutica e obter recursos.
Ademais, a cultura e a sociedade modelam e afetam a percepção da pessoa sobre saúde e, assim, tanto podem ser um instrumento para a promoção da saúde quanto da doença. Isto posto, podemos então avaliar o grau de saúde e bem-estar da mulher negra fluminense, aqui representada e homenageada pela pessoa da Sra. Edna Ezequiel, e verificar os déficits e os potenciais do Governo do Estado no sentido de atender suas contribuintes e cidadãs.
Conforme matéria da Revista Época[iii], a Sra. Edna Ezequiel mora na casa é a mais pobre entre as pobres e estudou apenas até a 2a série. Divide com os filhos (agora quatro) o barraco de quatro cômodos com pouco mais de 50 m2 e uma só janela, comprado por R$ 1.500. Sua filha mais velha, Alana, de 11 anos, foi morta por uma bala num confronto entre a polícia e traficantes e o pai da adolescente negra não foi ao enterro da filha, nem telefonou.
Ao saber que Alana foi baleada, a diarista correu para o hospital. Perambulou durante duas horas pelos corredores do hospital. Os(as) atendentes diziam que Alana estava sendo operada. Um funcionário do hospital, então, a levou até uma capela. No trajeto, disse que Edna precisava ser forte. Lá dentro, a diarista viu o corpo da filha no saco plástico preto usado para guardar cadáveres.
“Ninguém falou: ‘Mãe, olha, sua filha morreu’. E me levaram para lá e mostraram assim, como quem mostra um pedaço de carne no açougue.”
Fonte: revista Época, 13/03/07.
A sra. Edna Ezequiel é empregada doméstica, mas até a realização dessa reportagem em 2007, estava sem trabalho há dois anos e sete meses. No seu último emprego, ganhava R$ 175. Exatos 30 dias depois do assassinato da filha, a sra. Edna perdeu o irmão em circunstâncias semelhantes.
Diante do exposto, tendo em vista que a saúde é um direito constitucional brasileiro e, por conseguinte, um dever do Estado, qual o grau de saúde e bem-estar da mulher negra fluminense aqui representada pela Sra. Edna Ezequiel?
Ainda que no Brasil e no estado do Rio de Janeiro não faltem leis, políticas, programas, parlamentares, gestores, profissionais e organizações não-governamentais para tratar dos problemas sociais vivenciados cotidianamente pelas cidadãs negras, considero nececessário apontar para os deputados e deputadas desta Assembléia, nesta audiência pública, as suas obrigações e responsabilidades parlamentares quanto à implantação de mais duas políticas de enfrentamento do racismo, do sexismo e demais formas de violência. Políticas que visam o empoderamento e a defesa dos direitos da mulher negra, sua eleitora, contribuinte para os escorchantes impostos que remuneram os serviços e cargos públicos, aqui representada pela Sra Edna Ezequiel.
Celebrar a mulher negra e atuar cotidianamente em sua defesa:
👉🏾Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (2006)
👉🏾Perspectiva da Eqüidade no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal: Atenção à Saúde das Mulheres Negras (2005)
Estas duas políticas do Ministério da Saúde são resultantes da intensa luta travada pela população negra pela conquista de sua cidadania e pelo reconhecimento dos determinantes sociais, dentre eles o racismo e o sexismo, que afetam de forma impiedosa a população negra em geral e, mais fortemente ás mulheres e crianças. Mas, diante da demora na implementação destas políticas de saúde, constata-se que mais do que nunca se faz necessária a mobilização da sociedade ciivil para garantia do direito conquistado.
👉🏾Promover a cultura da paz
Numa sociedade justa e humana, os gestores têm mandato da população, dos cidadãos, para administrar a coisa pública de forma eficaz e em benefício de todos e todas. Mas, o Brasil já nasceu e cresceu com a marca da exploração do ser humano pelo trabalho escravo e pelo patriarcado. Assim, para melhor compreensão do problema racial e de gênero no Brasil e para análise do conhecimento produzido e da aplicação de políticas públicas sobre a condição das mulheres, é sempre útil utilizar como referencial a teoria racial crítica [iv] que estrutura-se em torno de dois eixos fundamentais: a equidade e a democracia. Esta teoria nos permite levar em conta a existência do fator extrínseco histórico-sociológico caracterizado por quatro séculos de escravidão e um século de exclusão, sob o arcabouço do patriarcado[v], para então analisar a condição da mulher negra fluminense e verificar o quanto ela se aproxima ou se distancia da justiça e igualdade de chances em conquistar as oportunidades apresentadas pela sociedade (princípio da equidade), assim como quanto a sua condição feminina propicia a sua participação plena nas instituições de controle social (princípio da democracia).
Gestor(a) e parlamentar(a) estadual: O que queremos? O que demandamos?
Enquanto coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Saúde e Etnia Negra – NESEN[vi], tive a grata oportunidade de participar na construção das duas políticas e, desta forma, oferecer uma pequena contribuição para resolver o contínuo descompasso entre os problemas que a academia considera “pesquisáveis” e os reais problemas vivenciados pela clientela. Assim, no sentido de neutralizar ou prevenir o racismo institucional dirigido à mulher negra, destaquei dos documentos citados algumas ações pertencentes ao âmbito estadual e que considero mais importantes. Todavia, permanece a reivindicação de implantar as políticas em sua totalidade.
No âmbito estadual, reivindicamos ao governo, parlamentares, gestores e profissionais o que se segue:
👉🏾Implantação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
Articulação com os municípios para o apoio à implantação e implementação dos Comitês Técnicos Municipais de Saúde da População Negra.
👉🏾Implementação do Plano Estadual de Saúde, de acordo com a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, em consonância com as realidades locais e regionais.
Estabelecimento de instrumentos e indicadores para o acompanhamento e avaliação do impacto da implantação/implementação desta Política.
👉🏾Pactuação na Comissão Intergestores Bipartite da alocação de recursos orçamentários e financeiros para a implementação desta Política.
👉🏾Criação do Comitê Técnico Estadual de Saúde da População Negra.
Articulação intersetorial, incluindo parcerias com instituições governamentais e não-governamentais, para a efetivação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra.
No que se refere ao Pacto, especificamente, no nível estadual, responsável pela Atenção Especializada e por para Acolher e Atender com Qualidade Gestantes e Recém-Nascidos(as) Negros(as) de risco são necessárias:
1 AÇÕES EDUCATIVAS SISTEMATIZADAS DE PREPARO PARA O PARTO SEM DOR E PARA O ALEITAMENTO EXCLUSIVO – para a gestante, com orientação sobre os riscos, identificação precoce de sintomas e cuidados na hipertensão arterial e na diabetes mellitus.
2 SENSIBILIZAÇÃO E CAPACITAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE SAÚDE – Inclusão nas capacitações de profissionais da rede básica e dos serviços de referência e das maternidades de referência para gestantes de risco, de conteúdos sobre diferenciais étnico/raciais nas condições de vida e na saúde da população.
3 “QUESITO COR” NOS DOCUMENTOS E SISTEMAS DE INFORMAÇÃO DO SUS – A inclusão do “quesito cor” nos sistemas de informação e nos documentos do SUS.
4 PRÉ-NATAL – Como preconiza o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) para que se garanta a aferição da pressão arterial de todas as gestantes em todas as consultas de pré-natal. Atenção especial deve ser dada para qualquer alteração nos níveis pressóricos das gestantes negras, com o devido acompanhamento e encaminhamento para serviços de alto-risco, quando detectadas alterações significativas.
5 PROGRAMA DE ANEMIA FALCIFORME – A doença falciforme não é contra-indicação para a gravidez mas, tendo em mente os riscos, a mulher portadora de doença falciforme deve ser acompanhada por serviços especializados ou conforme o que preconiza o Manual de Diagnóstico e Tratamento de Doenças Falcêmicas, do Ministério da Saúde. Os recém-nascidos devem ser submetidos à triagem neonatal.
6 QUILOMBOLAS – Incluir as comunidades quilombolas nas ações de saúde numa abordagem adequada às suas necessidades e que não esteja descolada da sua realidade sociocultural. Identificar, reconhecer e capacitar as parteiras tradicionais quilombolas, vinculando-as ao sistema local de saúde.
7 PARCERIAS – Os terreiros e outros espaços de religiões de matriz africana são importantes possibilidades de parcerias para atividades educativas em saúde.
Justifica-se a demanda urgente pelo adesão ao pacto em razão do que já se sabe, mas é bom relembrar aos parlamentares e gestores que:
A taxa de mortalidade materna de mulheres negras é quase seis vezes mais do que a taxa de mulheres brancas! As causas destas mortes são em sua maioria por evitáveis (síndromes hipertensivas, hemorragias, infecções puerperais e complicações do aborto), indicando uma péssima qualidade da assistência de saúde prestada durante o ciclo grávido-puerperal, pois o tipo de atendimento é diferenciado pela cor durante a gravidez e até na hora do parto[vii].
Considerações finais
Se um resultado óbvio que um único sistema de opressão produz é extração da cidadania, mais de um sistema de opressão pode produzir a completa desumanização da pessoa. Assim, ainda que a pessoa, tal como a Sra. Edna Ezequiel, cumpra com todos os seus deveres sociais e pague todos os seus impostos, ela não é considerada (subjetiva ou objetivamente) como uma cidadã plena com direitos ou com os mesmos direitos daquela que pertence ao grupo hegemônico.
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Um dos mecanismos de neutralização ou minimização dos sistemas de opressão é a ação afirmativa que se refere a políticas e procedimentos obrigatórios e/ou voluntários estabelecidos com a finalidade de garantir a igualdade e a proteção de direitos de pessoas historicamente discriminadas, como por exemplo as mulheres negras, igualmente para combater as fontes de discriminação e retificar as práticas discriminatórias[viii].
Quanto à mudança nas instituições sociais e de saúde, em especial, espera-se, primeiramente, o reconhecimento da prevalência do racismo e do sexismo e das suas variadas formas de expressão nas instituições. A partir deste reconhecimento, desenvolver competências para a prestação de um serviço que seja sensível às questões de gênero e raça, identificando fatores de risco, tais como tratamento desigual, descortês ou humilhante, conversas depreciativas, atendimento com indiferença e/ou repúdio, sujeição à dor ou desconforto prolongado, entre outros, que tanto vitimizam quanto perpetuam os sistemas de opressão contra a mulher negra.
Mas, não sejamos ingênuas, sabemos que as mudanças políticas acontecem pela ação e reação dos atores sociais e que segundo a teoria racial crítica1, o sistema está fortemente estruturado para garantir os privilégios do grupo hegemônico e que o custo das soluções não pode ameaçar as posições conquistadas. Neste sentido, o dia que celebra a mulher negra latino-americana e caribenha serve para nos manter, mulheres negras, mobilizadas na luta contínua e continuada pelos nosso direitos sociais.
Precisamos estar a postos para exigir do Estado a implementação de políticas e também o ressarcimento com indenizações quando viola nossos direitos, não protege a vida e expropria o nosso futuro, tal como fez e faz ainda com a Sra. Edna Ezequiel.
Em síntese, como a paz, entendida aqui como bem-estar pleno da pessoa, só existe quando há justiça, nesta audiência pública em celebração do dia da mulher negra latinoamericana e caribenha, reivindico aos parlamentares e às parlamentares que se faça justiça para a adolescente negra Alana, brutalmente assassinada, e sua mãe, a mulher negra, Sra. Edna Ezequiel, mais uma vez expropriada de seu futuro e atingida brutalmente em seu presente.
Como a paz é o caminho, uma ação neste sentido demonstraria o empenho de Vossas Excelências e em trilhar a paz e defender a equidade para todos e todas.
Referências
[i] Cruz, I. C. F. da; Pinto, A. Condições para a saúde e o bem-estar? Inquérito sobre as mulheres negras do Estado do Rio de Janeiro. Cad. Saúde Pública [online]. 2002; 18 (1):340-341. Available from: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2002000100035&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0102-311X (6 ago 2008)
[ii] Antonovisky, A The salutogenic model as a theory to guide health promotion. Health Promotion International 1(1):11-17, 1996
[iii] Fernandes N. “Para onde eu olho, só vejo a Alana” – Personagem da Semana – Edna Ezequiel; Revista Época, 2007. Disponível em: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG76651-6001-460,00-FATOS+PESSOAS+IDEIAS+E+TENDENCIAS+QUE+TRADUZEM+O+ESPIRITO+DO+TEMPO.html
[iv] Agulefo, U. et al Critical race theory. 2001. Available from: http://www.edb.utexas.edu/faculty/scheurich/proj7/criticalrace.htm (07 ago 2003).
[v] Castro, R; Riquer, F. La investigación sobre violência contra las mujeres em América Latina: entre el empirismo cego y la teoria sin datos. Cadernos de Saúde Pública 2003; 19(1):135-46.
[vi] Cruz, I.C.F. da Health and African-Brazilian Ethnicity Research Group. Online Brazilian Journal of Nursing 2002; 1 (1), [Online]. Available from: www.uff.br/nepae/africanbrazilianhealth.htm (06 ago 2003)
[vii] Petry, S. Até na hora do parto negra é discriminada. Folha Online 2002. Available from: http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ (25 mai 2002)
[viii] Heringer, R. Ação Afirmativa e Combate às Desigualdades Raciais1 no Brasil: o desafio da prática. Boletim Informativo PPCor/Laboratório de Políticas da Cor UERJ; 2003; 07 Available from: http://www.lpp-uerj.net/olped/documentos/ppcor/ppcor152.pdf (1 dez 2003)
Como citar:
Cruz, ICF da “DIA DA MULHER NEGRA LATINO-AMERICANA E CARIBENHA”- 2008 – perspectivas sobre a política de saúde e bem-estar. Niterói, 03/07/2023. Disponível em http://nepae.uff.br/?p=3225