As políticas de equidade social do Sistema Único de Saúde (SUS), tal como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra-PNSIPN, demandam mudanças no treinamento clínico sobre o encontro com a pessoa/população impactada por ideologias opressivas de modo que estas mudanças incluam como desconstruir estas as ideologias opressivas nas instituições sociais, em especial as de saúde. O que isso representa para o processo ensino-aprendizagem-avaliação na área de saúde, em especial?
De modo geral, representa ir além de desenvolver competências sobre diversidade, equidade e inclusão em saúde. É preciso também atuar na desconstrução das ideologias opressivas nos processos e fluxos do cuidado, presentes na cultura das instituições do sistema de saúde. Para tanto, é necessário ter competência estrutural, ou seja, a capacidade treinada para discernir e responder ao impacto das estruturas sociais, políticas e econômicas na saúde da pessoa/população (Zvika et al, 2022). Assim, quanto às políticas de equidade social do SUS, o desafio que se impõe é a identificação das melhores estratégias de ensino-aprendizagem-avaliação para o desenvolvimento de competência estrutural no sentido de discernir e responder ao impacto das ideologias opressivas, tais como racismo, LGBTfobia, misoginia, misogynoir, entre outras, na saúde da pessoa/população.
Quanto ao encontro clínico isento de vieses, na disciplina Diversidades, Equidade e Cuidados de Saúde, conduzo o laboratório de simulação com pacientes padronizadxs (Cruz, 2023 [a,b]), visando desenvolver a competência estrutural de estudantes da graduação de enfermagem.
O role playing com pacientes padronizadxs (PP) é um recurso experiencial de ensino-aprendizagem-avaliação. Contudo, é desafiador propor experiências que desenvolvam competência estrutural em situações semelhantes com a realidade, especialmente quando não se dispõe de atores/atrizes preparados(as) tanto para a área de saúde quanto para áreas afins.
Minha trajetória nos movimentos sociais permite afirmar que as populações impactadas por ideologias opressivas não estão representadas no ensino teórico-prático da clínica. Tampouco avançou o ensino sobre os vieses implícitos que constituem barreiras ao encontro clínico. Consequentemente, os(as) estudantes estão privados(as) de experiências que lhes permitam desenvolver habilidades de autorreflexão quanto a seus vieses implícitos e de comunicação terapêutica com o(a) paciente enquanto uma pessoa sujeita a sofrer dano durante o encontro clínico devido a esses vieses.
Propus, em parceria com o diretor de teatro Marcos Campello, do Coletivo TransParente, propus um projeto de extensão sobre Pacientes Padronizadxs. Por meio deste projeto, Pacientes Padronizadxs (PPs) são pessoas que estão sob direto treinamento e supervisão de um(a) docente da área de saúde ou afim. PPs, enquanto interagem com estudantes da área da saúde ou de áreas afim, recriam a história da pessoa e sua diversidade, incluindo aspectos sobre personalidade, achados físicos e estrutura emocional e padrão de resposta de um caso clínico, conforme a demanda da disciplina.
Pacientes padronizadxs (PPs) é uma metodologia de ensino-aprendizagem-avaliação experiencial para o desenvolvimento de uma variedade de competências clínicas, culturais e estruturais.
De forma empírica, desde 2018, a disciplina Diversidades, Equidade e Cuidados de Saúde (DECS) conta com a colaboração do Coletivo TransParente para o desenvolvimento da competência estrutura para o encontro clínico terapêutico nos(as) estudantes de enfermagem. Em DECS, com a colaboração de pacientes padronizadxs na entrevista compassiva, desenvolvemos a competência estrutural sobre o encontro clínico isento de vieses implícitos, assim como a comunicação assertiva. O momento de “debriefing” contribui para o desenvolvimento da habilidade de autorreflexão. Enfim, a competência estrutural baseada no encontro clínico inclui as habilidades necessárias à melhor experiência de pessoas/populações impactadas por ideologias opressivas, tais como misogynoir, LGBTfobia, racismo, etc, com o cuidado de saúde.
Julgo que a principal inovação na utilização desta estratégia de ensino com PPs é a experiência que leva ao desenvolvimento, principalmente, da habilidade de auto-reflexão quanto aos próprios vieses e à necessidade ética de enfrentá-los, visando o cuidado centrado na pessoa e a melhor experiência do(a) paciente no SUS. De modo objetivo, o ensino-aprendizagem-avaliação com a colaboração de PPs demonstra como o humanismo acontece na prática profissional.
No laboratório de encontro clínico, cada PPs é entrevistado(a) por meio do cadastro individual do SUS. Em nossa disciplina, Pacientes Padronizadxs (PPs) são parceiros(as) na experiência de aprendizagem e colaboram com feedbacks que identificam problemas de desempenho e de empatia com os(as) alunos(as) entrevistadores(as).
Os próximos passos são desenvolver conteúdo adicional de casos clínicos, inclusive além da área da saúde. À medida que novos PPs participam do projeto, incluindo outros grupos populacionais impactados por ideologias opressivas, medidas específicas de resultados de aprendizagem precisam ser desenvolvidas e pesquisadas para avaliar o impacto geral deste projeto.
Isto posto, os objetivos do projeto de extensão são proporcionar um ambiente de aprendizagem seguro para estudantes da área de saúde com a simulação de Pacientes Padronizadxs (PPs) sobre os desafios dos vieses implícitos e ideologias opressivas no encontro clínico, como forma de se prepararem antes de entrarem na prática clínica; e criar um elenco de Pacientes Padronizadxs (PPs) que represente demograficamente a população usuária do SUS, visando o desenvolvimento de competências estruturais e culturais, necessárias para a equidade e inclusão no SUS.
Para o alcance dos objetivos, o projeto conta com o benefício do diretor de teatro, Marcos Campello, Coordenador de PPs, designado gerenciar e treinar PPs quanto à atuação nos casos clínicos das disciplinas. O relacionamento entre o coordenador de PPs e a docente coordenadora, bem como demais docentes dos cursos, serve para fornecer consistência adicional com o desenvolvimento do currículo de simulação dentro e entre as disciplinas, garantindo simulação de alta qualidade no processo ensino-aprendizagem-avaliação na área de saúde e afins.
O programa vai atingir seus objetivos por meio de um processo de recrutamento para garantir que um grupo de PPs seja composto por pessoas que proporcionarão a experiência sobre diversidade, equidade e inclusão no encontro clínico da mais alta qualidade. Estas pessoas deverão então ser convidadas a participar de uma oficina e participar de uma audição individual ou conjunta com outros candidatos(as). A oficina é coordenada pela docente da área de saúde com o apoio do coordenador de PPs, em razão do conhecimento sobre as demandas de educação profissional de saúde e dos objetivos de aprendizagem correspondentes.
A formação é essencial para os(as) PPs manterem experiências de qualidade nas disciplinas. PPs podem ainda ser recrutados(as) para desempenhar múltiplas funções e atribuições de casos durante um período acadêmico ou em ambientes de saúde diversos.
Na formação dos(as) PPs, prevê-se o envolvimento dos(as) estudantes de graduação no processo ensino-aprendizagem-avaliação, através de Sessões de Escuta para discussão das problematizações, visando garantir o debate das questões analisadas; e da leitura de textos (individual e/ou em grupo) com o apoio da coordenação e convidados(as), quando pertinente. A avaliação será fundamentalmente formativa a cada encontro. Todos(as) os(as) participantes do treinamento em PPs receberão certificado mediante a satisfação dos critérios de avaliação.
Enfim, convido a colaborar conosco neste projeto para a geração de estratégias e recursos didáticos que ajudem no desenvolvimento de competência estrutural baseada no encontro clínico e, futuramente, baseada nos sistemas de saúde. Afinal, incluir diversidade, equidade e vieses implícitos nas experiências de ensino-aprendizagem-avaliação de estudantes, profissionais e gestores(as) de saúde é uma inovação que parte de uma demanda real da sociedade brasileira.
Referências
Zvika Orr, Efrat Machikawa, Shifra Unger, Anat Romem, Enhancing the Structural Competency of Nurses Through Standardized Patient Simulation, Clinical Simulation in Nursing, Volume 62, 2022, Pages 25-30, ISSN 1876-1399,
https://doi.org/10.1016/j.ecns.2021.09.005.
Cruz, Isabel Risco de comprometimento da dignidade humana: quando a causa é o sistema de saúde. A solução também. NEPAE/UFF. Niterói, 27/05/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2764 (a)
Cruz, ICF da O ensino clínico do cuidado de saúde isento de viés implícito. NEPAE/UFF. Niterói, 09/07/2023. Disponível em http://nepae.uff.br/?p=3251 (b)
Como citar:
Cruz, ICF da Pacientes Padronizadxs: estratégia de ensino-aprendizagem-avaliação para desenvolver competência estrutural em saúde. NEPAE/UFF. Niterói, 23/11/2023. Disponível em http://nepae.uff.br/?p=3481