Como desenvolver na equipe de saúde competência clínica estrutural para abordar as iniquidades, decorrentes das ideologias opressivas, nos resultados terapêuticos entre diferentes grupos populacionais?

Em que pese termos políticas de equidade no SUS, são escassas as instituições de saúde que têm como referencial a equidade e na sua política de educação permanente a capacitação em competência estrutural.

Competência clínica estrutural, segundo Metzl; Hansen (2014) , é a “capacidade aprendida para discernir como uma série de tópicos definidos clinicamente como sintomas, atitudes ou doenças (por exemplo, depressão, hipertensão, obesidade, tabagismo, “não adesão a medicamentos”, trauma, psicose) também representam as consequências posteriores para a pessoa de uma série de decisões políticas, sociais, institucionais, a respeito de questões como cuidados de saúde e sistemas de distribuição de alimentos, leis de zoneamento, infra-estruturas urbanas e rurais, medicalização, ou mesmo sobre as próprias definições de doença e saúde”.

Isto posto, minha proposta de advocacy – IDEAS (Inclusão, Diversidade, Equidade e Ação em Saúde) – trabalha o processo ensino-aprendizagem-avaliação construindo experiências para o desenvolvimento de competências estruturais para para envolver os determinantes sociais na prática clínica.

Um exemplo de experiência que apresento neste texto é o Jogo do Quesito Cor.

Prática Clínica onde as pessoas estão

Instruções do Jogo:

-Este é um jogo de perguntas & respostas. Você pode usar para estudar ou ajudar as pessoas a aprender. Pode ser jogado só, uma pessoa contra outra, ou em equipe. Você pode acessar dica ao clicar 💡 em se precisar de mais informação para melhor responder. A primeira pessoa ou primeira equipe a responder corretamente a todas as perguntas vence o jogo. Obviamente, você pode repetir este jogo várias vezes para praticar e melhorar suas respostas.

Vamos começar!

Observe o registro.

quesito cor e iniquidade em saúde
RMM: quesito cor e iniquidade em saúde

O quesito cor é um dado sensível e, portanto, precisa de um tratamento específico, seja para análise epidemiológica (desagregado), seja para a coleta na entrevista clínica.

Desde o final da década de 1980, a coleta do quesito cor é questionada por diferentes atores da área da saúde.
Ainda hoje, são infindáveis os “por quê?” e os “para quê?” 💡

O quesito cor na clínica depende do reconhecimento da existência do racismo, da compreensão de como ele se manifesta e do compromisso em abordá-lo.

Então, com base no título de uma cartilha sobre o quesito cor 💡, complete a frase: Perguntar não ofende…

A) …responder ajuda a prevenir e revelar iniquidades étnico-raciais.

B) …porque quem pergunta é ignorante por 5 minutos; quem não pergunta é ignorante para sempre

Ainda que a resposta B seja uma verdade, quando se trata de desenvolver competência clínica estrutural contra o racismo, a melhor resposta é “A”.

Quesito cor no Cadastro Individual
Quesito cor no Cadastro Individual

Observe a imagem acima. Analise a assertiva:

“A razão de coletar o quesito cor é porque o quesito cor, a orientação sexual, o pertencimento étnico, entre outros tópicos, têm relação com determinantes sociais da saúde (DSS), tal como racismo, LGBTfobia e sexismo, que impactam o acesso da pessoa/população socialmente vulnerável ao SUS”. 

Responda: Verdadeiro ou Falso?
A melhor reposta é “verdadeiro”. Vamos avançando no jogo.

A coleta do quesito cor acontece durante a entrevista clínica e o exame físico. Observe as cenas abaixo e indique qual (A ou B?) sugere que a instituição tem uma cultura referenciada no Cuidado Centrado na Pessoa💡.

Qual a cultura institucional?

Cena B 👍🏾 Espero que tenha notado que a coleta do quesito cor pode representar mais do que um dado. No desenvolvimento de competência clínica estrutural é preciso entender como a cultura institucional da unidade de saúde funciona seja para a manutenção das ideologias opressivas ou, ao contrário, para o enfrentamento dos determinantes sociais. Consolida esta competência quem identifica na cena “B” o Cuidado Centrado Na Pessoa no mobiliário, por exemplo.

Vamos aprendendo!

Observe a conduta:

Antes de perguntar sobre o quesito cor, ou qualquer outro dado sensível, eu inicio o encontro clínico 
(1) cumprimentando a pessoa e 

(2) apresentando-me pelo meu nome, bem como 

(3) explicando minha função ou cargo.

Após análise, responda: Correto ou incorreto?

Se você respondeu “correto”: – Parabéns! Você é um exemplo a ser seguido. Tudo indica que você é capaz de operacionalizar as políticas de equidade em saúde, tendo como base o cuidado centrado na pessoa. Continue no jogo.

Quesito cor no Cadastro Individual
Quesito Cor na Entrevista Clínica- Como coletar o dado compassivamente?

Quesito cor – uma forma empática de perguntar sobre raça/cor na entrevista clínica:

No Brasil, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra orienta ações pela igualdade entre os grupos populacionais, conforme a raça ou etnia. Por isso, eu agora rotineiramente pergunto a todos os meus pacientes como se auto-classificam. Como o(a) Sr(a) se auto-classifica: branco(a), preto(a), amarelo(a), pardo(a) ou indígena?

No que se refere à sugestão acima sobre preâmbulo para introdução de um tema potencialmente sensível, você concorda ou discorda sobre esta forma de perguntar à pessoa sobre sua cor/raça?

Se respondeu concorda, significa que está avançando no aprendizado. Parabéns! Se respondeu discorda, sugiro que busque bibliografia sobre a coleta de tópicos sensíveis em entrevistas 💡. Pode ajudar.

Quesito cor – qual a forma de perguntar sobre raça/cor numa urgência/emergência?

Quesito Cor – coleta na alta complexidade

Questões sensíveis como o quesito cor devem ser colocadas no meio da entrevista clínica, geralmente na metade dos dois terços do percurso do histórico ou anamnese. Então:
– “
Eu rotineiramente pergunto a todos os meus pacientes como se auto-classificam. Como o(a) Sr(a) se auto-classifica: branco(a), preto(a), amarelo(a), pardo(a) ou indígena?”

No ambiente de alta complexidade, no que se refere à sugestão acima sobre preâmbulo para introdução de um tema potencialmente sensível, você considera correto ou incorreto sobre esta forma de perguntar à pessoa sobre sua cor/raça?

Se você respondeu “correto”: – Parabéns! Você além de já ter entendido sobre a relevância do quesito cor para identificação das iniquidades nos resultados de saúde, também entende que esta é uma informação sensível que exige de você uma abordagem compreensiva sobre a situação que a pessoa está vivenciando no momento da entrevista. Continue no jogo!

Quesito cor – coleta para a Declaração de Nascido Vivo (DNV)

Observe a imagem acima. Analise a assertiva:

“Sobre o quesito cor: na sala de parto quem declara a cor da criança é a mãe ou responsável”.

Responda: Verdadeiro ou Falso?
A melhor reposta é “verdadeiro”. Vamos avançando no jogo.

Quesito cor – como fazer em caso de óbito?

Quesito cor e a Declaração de Óbito: – Quem declara a cor da pessoa morta, preferencialmente?

A) Familiar/Pessoa responsável

B) Médico(a) após consulta a documento oficial

A melhor resposta é “A” 👍🏾 A coleta do quesito cor representa uma mudança de paradigma em direção ao cuidado centrado na pessoa/família/população.

Quesito cor – como reagir com empatia à resposta da pessoa sobre um dado sensível na entrevista clínica?

Agradeço por informar. Essas são muitas vezes perguntas difíceis de responder.

No que se refere à sugestão acima sobre modo de agradecer uma informação potencialmente sensível, você considera adequada ou inadequada sobre esta forma de agradecimento?

Se você respondeu “adequada”: – Parabéns! Você compreende que esta é uma informação sensível que exige uma postura empática. Continue no jogo!

Atenção, eu não lhe prometo um mar de rosas…

Observe a cena

“O que o Sr. acha?”

Analise e responda:
– Com base na reação verbal e não-verbal da paciente, como provavelmente foi a pergunta do profissional?

A) Qual sua cor?

B) Como a senhora se autodeclara…?

Se você respondeu “B”: – Parabéns! É a melhor resposta. Você entende que esta é uma informação sensível para quem informa porque tem o potencial de suscitar experiências prévias de discriminação racial. Não é demais repetir que esta pergunta exige de você uma abordagem compreensiva. Continue no jogo!

Observe a cena

“Você não está vendo qual a minha cor?”

Analise e responda:

Com base na reação verbal e não-verbal do paciente, como provavelmente foi a pergunta do profissional?

A) Qual sua cor?

B) Como a senhora se autodeclara…?

Se você respondeu “B”: – Parabéns! É a melhor resposta. Você já entendeu algo importante: autodeterminação é um princípio básico para a coleta do quesito cor. A pergunta é para ser feita a todos e todas, ainda que para quem pergunta a cor ou etnia da pessoa possa parecer evidente. Além disso, como esta é uma informação sensível para quem informa, para quem pertence ao grupo social hegemônico, a pergunta tem o potencial de suscitar ameaça a privilégios. Reitero: a pergunta exige de você uma abordagem compreensiva. Continue no jogo!

Observe a cena

Quesito cor e nome social – o que têm de semelhante?

Provavelmente, a pergunta do(a) profissional foi:

Como quer que eu lhe chame?

Analise e responda: Verdadeiro ou Falso?

A melhor reposta é “verdadeiro”. A coleta compassiva do quesito cor tem como referencial o cuidado centrado na pessoa. Esta competência clínica estrutural estende-se a demais questões suscitadas por ideologias opressivas e determinantes sociais da saúde, tal como a LGBTfobia.

Observe as cenas.

Quesito cor e dúvidas de pacientes

Analise e responda:

Qual a sua resposta nestes casos?

A) Rapidamente, explico sobre o método do IBGE para coleta do quesito cor e as 5 categorias.

B) Igualmente, informo que só vale a autodeclaração ou a declaração de pessoa responsável pelo(a) paciente.

C) Ambas as assertivas estão corretas e são complementares

Se você respondeu “C”: – Muito bem! É a melhor resposta. Você entende que esta é uma informação sensível para quem informa, tendo o potencial de gerar dúvidas legítimas. Nosso papel é dirimir dúvidas com evidência científica. Continue no jogo!

Observe a cena.

Minha cor? Corzinha de canela!

Analise e responda:
– Qual a sua resposta neste caso?

A) Rapidamente, explico sobre o método do IBGE para coleta do quesito cor e as 5 categorias.

B) Igualmente, informo que só vale a autodeclaração ou a declaração de pessoa responsável pelo(a) paciente.

C) Ambas as assertivas estão corretas e são complementares

Se você respondeu “C”: – Muito bem! É a melhor resposta. Demonstra que está entendendo o desafio da coleta compassiva do quesito cor. Vale repetir: nosso papel é dirimir dúvidas com evidência científica. Continue no jogo!

Observe a cena.

Minha cor? Isso não é importante!

Respeito sua opinião. Porém, igual à sua idade e sexo, a raça/cor é necessária prevenir desigualdades na saúde. Por isso, a sociedade determinou por lei que o registro do atendimento só pode entrar no sistema com esta informação também. E por  autodeclaração. Não devo informar pela pessoa, seria fraude.

Analise e responda:
Esta também seria sua resposta neste caso?

A) Não

B) Sim

Se você respondeu “B”: – Muito bem! É a melhor resposta. Demonstrou mais uma vez que entende o desafio da coleta compassiva do quesito cor. Continue no jogo!

Quesito cor – uma das formas de operacionalização do racismo institucional

Observe o documento.

Quesito cor e algo que nem deveria constar…
Quesito cor e algo que nem deveria constar…

Analise o documento e responda:

O(a) gestor(a) monocraticamente muda a metodologia do quesito cor, isso significa?

A) Racismo estrutural

B) Racismo institucional

C) Ambas as assertivas estão corretas.

Se você respondeu “C”: – Muito bem! É a melhor resposta. A metodologia do IBGE foi pactuada ainda na década de 70 (em plena ditadura!) com o Movimento Negro 💡. Testada e aprovada. Mudar monocraticamente é abuso de poder que causa um dano incomensurável à população brasileira como um todo.
Continue no jogo!

Preto, preta, pardo, parda, indígena, amarelo (asiático/asiática)…Já vivenciou racismo?

Além de agradecer o compartilhamento da informação sensível, como perguntar para quem, ao declarar-se, pertence a grupos populacionais impactados por ideologias opressivas, indo além do quesito cor para investigar a vivência prévia quanto ao determinante social da saúde – racismo?

– Alguma vez vivenciou qualquer situação de discriminação por sua cor ou sua raça ou etnia durante o atendimento numa Unidade de Saúde?

No que se refere à sugestão acima sobre modo de investigar vivência e trauma por discriminação racial, você considera adequada ou inadequada sobre esta forma de agradecimento?

Se você respondeu “adequada”: – Parabéns! Você compreende que esta é uma informação mais sensível que irá exigir de você, caso a pessoa informe sobre o trauma, mais do que uma postura empática. Vai lhe exigir compaixão clínica, outra competência clínica estrutural, para dar início ao “cuidado baseado no trauma racial informado💡“. Continue no jogo!

Observe o registro clínico.

“Na figura acima há um registro clínico sobre a experiência de discriminação racial por uma pessoa e o plano proposto pelo(a) profissional, conforme a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra-PNSIPN”

Analise e responda:

A assertiva está incorreta ou correta?

Se você respondeu “correta”: – Muito bem! É a melhor resposta. A discriminação racial é crime. Mas também é causa de um diagnóstico clínico. E diagnóstico não deve ficar sem o seu devido tratamento e evolução. A coleta do quesito cor tem impacto na qualidade do encontro clínico e no acesso ao serviço de saúde porque é, em si, uma mudança de paradigma quando se trabalha com foco nas políticas de equidade social.

Observe o registro.

Razão de Mortalidade Materna & Escolaridade
Razão de Mortalidade Materna & Escolaridade

Analise e responda:

Com diferenças etnicorraciais injustas (iniquidades) na Unidade de Saúde, pela análise do quesito cor, de forma desagregada, devemos implementar ações de saúde universais ou focalizadas?

A) Ações universais

B) Ações focalizadas

Seja você gestor(a) ou não e respondeu “ações focalizadas”: – Muito bem! É a melhor resposta. A correção das iniquidades em saúde é necessária para garantir o princípio básico do SUS: igualdade no acesso.

Observe a cena.

Aos 22 anos, D.* deu à luz seu 3o filho, ficando internada para tratar o bebê recém-nascido com sífilis. “Eu já tomei benzetacil, mas não me curei”, afirma a manicure. D* viajou quase 40 km até a maternidade. Antes, ela e o marido bancaram o tratamento da sífilis. “A gente gastou R$ 14 em cada injeção, 3 para mim e 3 para ele. Mesmo assim, meu filho nasceu com muitas marcas, não conseguia nem abrir os olhos.”

Analise na figura a seguir as intervenções potenciais para este caso clínico.

Responda:

Qual intervenção se aplica: Marque toda a que for pertinente.

( ) Ensino em Saúde; ( ) Aconselhamento; ( ) Consulta de Enfermagem; ( ) Colaboração Inter-Profissional;
( ) Organização comunitária; ( ) Defensoria; ( ) Marketing social; ( ) Desenvolvimento de Política e implementação; ( ) Vigilância; ( ) Investigação de doença ou caso; ( ) Busca ativa; ( ) Triagem;
( ) Encaminhamento e seguimento; ( ) Gerenciamento de caso; ( ) Delegação de função

Se você marcou 1, OK. Se marcou todas, OK também! Vamos deixar esta como um bônus de reflexão. Há intervenções necessárias à paciente e sa família, mas há também aquelas que demandam sua competência clínica estrutural para desconstruir nesta Unidade e no Sistema os processos causadores de resultados negativos e danos à família.

Fim de jogo!

Chegou aqui: Parabéns!

Você ganhou mais uma habilidade clínica, tendo avançado no desenvolvimento de competência clínica estrutural 🎓. O(a) paciente ganhou um(a) profissional melhor no seu cuidado de saúde!!!
O desafio agora é praticar a coleta do quesito cor na entrevista clínica e, principalmente, realizar a triagem para vivência de racismo e, neste caso, o cuidado relacional que recupere a confiança da pessoa em si própria e no Sistema Único de Saúde.

Compartilhe a sua experiência!

Referências

Metzl, JM; Hansen, H. Structural competency: Theorizing a new medical engagement with stigma and inequality,
Social Science & Medicine, v 103, p126-133, 2014. Available at https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.06.032.

Cruz, ICF da Tempo e a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN). NEPAE/UFF. Niterói, 27/06/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3130

Cruz, ICF da Roda de Conversa com Gestantes e Roda de Intervenções em Saúde. NEPAE/UFF. Niterói, 24/06/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3060

Como citar:

Cruz, ICF da Jogo do Quesito Cor: A Entrevista Clínica. NEPAE/UFF. Niterói, 05/06/2024. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3553

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