Seja na formação, seja na educação permanente, o desafio do processo ensino-aprendizagem-avaliação do encontro clínico pessoa-pessoa é constante porque a sociedade muda e com ela seus costumes, práticas e políticas públicas. Assim, julgo que para o desmantelamento das ideologias que mediam o encontro clínico é necessário o desenvolvimento da “Competência Clínica Estrutural” que, parafraseando Metzl e Hansen*, é definida como a habilidade do(a) profissional ou gestor(a) de saúde reconhecer e responder a sinais e sintomas de doença ou resposta da pessoa a problemas de saúde como os efeitos posteriores de amplos eventos históricos, sociais, políticos, assim como estruturas econômicas.

Com este propósito, a disciplina Diversidades, Equidade e Cuidados de Saúde (DECS*) foi criada para o desenvolvimento da competência clínica estrutural, considerando as políticas de equidade do SUS com foco na população negra, população LGBT+, população em situação de rua, população dos campos, florestas e águas e povos ciganos. Já se reconhece o impacto de determinantes sociais na saúde da pessoa e das populações, em especial, aquelas impactadas por ideologias opressivas como o racismo, a misoginia, a misogynoir*, entre outras. Mas, como interromper o ciclo vicioso da opressão no ponto do cuidado de saúde? Você sabe?

Diante desse cenário, a criação da disciplina DECS representa um passo crucial para a superação dessas barreiras. Ao abordar as diversidades e as desigualdades sociais, a disciplina busca equipar os profissionais de saúde com as ferramentas necessárias para desconstruir as ideologias opressivas e promover um cuidado mais justo e equânime.

Na área da saúde, os xingamentos “identitários” são raros. Todavia, não são poucas as microagressões que causam uma experiência negativa para a pessoa quanto ao encontro clínico.

narrativa da personagem do game “doença estranha”

A operacionalização de uma ideologia durante o encontro clínico nem sempre é de fácil identificação pelas pessoas envolvidas no processo de cuidar e autocuidado. Nota-se o seu efeito principalmente nos dados epidemiológicos na forma de disparidades e iniquidades nas taxas dos grupos populacionais vulneráveis quando comparadas às taxas dos grupos hegemônicos. Individualmente, a ideologia impacta na pessoa e como efeito observa-se a sua desconfiança em relação a profissionais e serviços de saúde, por exemplo.

Como metodologia, uso na disciplina a aprendizagem experiencial, com o auxílio luxuoso do Coletivo Transparente de Teatro*, enquanto um processo que compreende teoria e prática, conduzindo ao desenvolvimento profissional porque se dirige a uma meta, a um propósito específico de aprendizado, a saber: desconstrução de ideologias opressivas no encontro clínico.

Com a teatralização de situações ou narrativas clínicas, trabalhamos para 🎯 identificar as influências das ideologias opressivas no encontro clínico com pessoa pertencente a grupos socialmente vulneráveis.

Laboratório de Prática – “Doença Estranha”, paciente-ator Pedro. Foto: Marcos Campello

No sentido de capacitar para a 🎯geração de estratégias que desmantelem as influências das ideologias opressivas no encontro clínico, ressalto duas:

👉🏾a apresentação profissional. No mínimo, em um encontro clínico de qualidade, as pessoas sabem seus nomes. Então, desenvolvo o processo ensino-aprendizagem-avaliação desta competência com a campanha “Olá, meu nome é…*

👉🏾De modo complementar, outras perguntas são propostas para uma história social mais abrangente – além do foco na doença ou problema de saúde. Destaco, uma das mais importantes perguntas de uma anamnese ou histórico com foco na pessoa: – “Como quer que eu lhe chame?”

Quanto à fase de diagnóstico ou de julgamento clínico, é fundamental o 🎯entendimento sobre a inclusão de fatores estruturais na lista de problemas e no plano terapêutico quando apropriado. Cabe ressaltar que a CID-11 e a CIAP2 possuem terminologias que contemplam os efeitos das ideologias ou do desrespeito aos direitos humanos sobre a saúde. Em DECS, o processo ensino-aprendizagem-avaliação busca desenvolver a habilidade de diagnosticar e tratar o “risco de dignidade humana comprometida (NANDA; CIPE)”.

No que se refere ao plano terapêutico, no ponto do cuidado, principalmente, no que se refere ao aprendizado de 🎯estratégias para responder às influências das ideologias opressivas, na forma de microagressões, durante o encontro clínico, uso a simulação clínica denominada “testemunha ética”*.

Testemunha Ética no Encontro Clínico

A avaliação formativa acontece durante todo o período do laboratório de prática. Ainda assim, no encerramento da atividade, realizo um breve debriefing com algumas perguntas diretivas, tal como: “Quais determinantes sociais que impactam a vida desta pessoa dispararam os vieses na equipe de saúde?” E o 💡ticket de saída tem a seguinte pergunta: “O que você aprendeu?”

uma autoavaliação (ticket de saída) após o laboratório de prática “doença estranha”

O processo ensino-aprendizagem-avaliação da competência clínica estrutural, posso dizer com base neste laboratório de prática, é intenso e não se completa obviamente em 2 horas aula de uma disciplina de graduação com 2 créditos. Todavia, posso também dizer que o laboratório de prática com a teatralização de uma situação clínica, tendo a colaboração de “paciente padronizado” é uma experiência intensa, rica e única para todos e todas que dela participam.
Precisamos avançar inclusive com a proposta de um currículo mínimo para o desenvolvimento da competência clínica estrutural visando a equidade social nos sistema de saúde que, segundo Neff et al, compreenda
✔️como as ideologias opressivas afetam a saúde do(a) paciente (evitação, por ex);
✔️como as ideologias opressivas afetam o encontro clínico (microagressão, viés implícito, por ex); e
✔️ estratégias de enfrentamento das ideologias para usar dentro (testemunha ética, por ex) e fora da clínica (advocacy, coalizão, por ex).

E você? Como ensina ou aprende ou avalia o modo a garantir a experiência do(a) paciente sem discriminação racial no encontro clínico e a aumentar a resiliência da equipe interprofissional de saúde quanto à influência dos determinantes sociais?

Referências

Cruz, ICF da Misogynoir: uma introdução ao tema. NEPAE/UFF. Niterói, 14/10/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3381

METZL, J. M., & HANSEN, H. Structural competency: theorizing a new medical engagement with stigma and inequality. Social science & medicine, 103, 126-133, 2014. DOI:10.1016/j.socscimed.2013.06.032. » https://doi.org/10.1016/j.socscimed.2013.06.032

CRUZ, Isabel CF da. Diversidade, Equidade em Saúde e Cuidados de Enfermagem – proposta de disciplina para a graduação em enfermagem na EEAAC/UFF.. Boletim NEPAE-NESEN, [S.l.], v. 11, n. 3, july 2015. ISSN 1676-4893. Disponível em: <https://jsncare.uff.br/index.php/bnn/article/view/2780/667>. Acesso em: 20 july 2024.

Cruz, Isabel Risco de comprometimento da dignidade humana: quando a causa é o sistema de saúde. A solução também. NEPAE/UFF. Niterói, 27/05/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2764

CRUZ, Isabel CF da. 16ª Conferência Nacional de Saúde e os Impactos do Racismo na Saúde da População Negra: Formação para desconstrução dos determinantes sociais em saúde. Boletim NEPAE-NESEN, [S.l.], v. 15, n. 1, oct. 2018. ISSN 1676-4893. Disponível em: <https://jsncare.uff.br/index.php/bnn/article/view/3097/780>. Acesso em: 20 july 2024.

CRUZ, Isabel CF da. “Prevenir a discriminação institucional na Saúde: prescrição da enfermeira- A questão étnica e racial”. Boletim NEPAE-NESEN, [S.l.], v. 15, n. 1, apr. 2018. ISSN 1676-4893. Disponível em: <https://jsncare.uff.br/index.php/bnn/article/view/3033/774>. Acesso em: 20 july 2024.

Neff J, Knight KR, Satterwhite S, Nelson N, Matthews J, Holmes SM. Teaching Structure: A Qualitative Evaluation of a Structural Competency Training for Resident Physicians. J Gen Intern Med. 2017 Apr;32(4):430-433. doi: 10.1007/s11606-016-3924-7. Epub 2016 Nov 28. PMID: 27896692; PMCID: PMC5377882.

Como citar:

Cruz, ICF da Competência Clínica Estrutural: como desenvolver? NEPAE/UFF. Niterói, 22/07/2024. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3726

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