Há um tempo (Cruz, 2013), escrevi um artigo no qual relacionava alguns problemas que se somavam ao racismo institucional devido à falta de uma área técnica para gestão da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra – PNSIPN – tais como: a ausência de ações de prevenção e combate ao racismo e sexismo institucionais na iniciativa da Rede Cegonha, por exemplo. Igualmente, o estabelecimento de metas de equidade etnicorracial nos resultados terapêuticos e a busca ativa das pessoas pertencentes aos grupos populacionais impactados pela pobreza ou ideologias opressivas.

O desafio agora, com a aprovação da lei Lenora Mendes Louro, no. 7749/2022, que criou o Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra (PMSIPN), na cidade do Rio de Janeiro, é o “policy process”, ou seja, como uma instância de gestão ou área técnica em saúde da população negra deve atuar para cumprimento de sua maior finalidade: desconstruir o racismo institucional na Rede de Atenção à Saúde (RAS), implementando o PMSIPN.

Conforme a lei aprovada (Cruz, 2023), a instância de gestão, com locus no Gabinete da SMS, atua com Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN) na implementação do PMSIPN. Para as questões administrativas, a instância tem uma equipe que estrutura-se nestes eixos, a saber:

  • Gestão e planejamento do Programa
  • Informação e Educação sobre Equidade Etnicorracial em Saúde
  • Rede de Atenção à Saúde (Básica e Especializada)
  • Vigilância em SPN

De modo geral, na rede de saúde, o caminho do cuidado descreve a melhor trajetória do(a) usuário(a) ou paciente e todas as essenciais tarefas da equipe interprofissional de saúde, assim como os processos envolvidos, inclusive intersetoriais. No que se refere à população negra e qualquer outro grupo populacional impactado por determinantes sociais, cabe à instância de gestão da política de equidade, no meu entender, identificar nesta trajetória do(a) usuário(a) de saúde as potenciais barreiras e propor estratégias para sua remoção, otimizando ou corrigindo o processo do cuidar.

Diante do impacto do racismo institucional no acesso à saúde, comprometendo em especial a meta “experiência do(a) usuário(a)”, julgo fundamental que a área técnica de saúde da população negra se organize, segundo Ferreira et al (2016), a partir de uma perspectiva bottom-up, ou seja, operacional, de baixo para cima, uma vez que o foco do programa são usuários(as)e provedores(as) onde as ações do programa acontecem de fato e de forma dinâmica, a saber:  no ponto do cuidado (instituição de saúde), assim como, por vezes, durante o encontro clínico (relação interpessoal).

Justifica-se a adoção da perspectiva bottom-up para implementação do Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra a partir do estudo de Milanezi (2020) no qual a autora constatou, por exemplo, que os(as) provedores(as) de saúde, no ponto do cuidado,  mobilizam repertórios concorrentes à PNSIPN, tais como:

  • Engajamento à resistência a proposta da saúde focalizada na população impactada por racismo
  • Poder discricionário como, por exemplo, reprodução ou manutenção de desigualdades de raça, gênero e classe quando classificam moralmente os(as) usuários(as) de saúde  como “difíceis” em função da vulnerabilidade social dos(as) mesmos(as).

Salvo melhor juízo, para superar a resistência ao cuidado focalizado na população negra, uma estratégia é tornar a “equidade e inclusão em saúde” um valor, a meta comum a todos e todas que atuam na Rede, garantindo assim a implantação do Programa. Para tanto, o setor de Vigilância em Saúde da População Negra precisa desenvolver ações que levem à prática em saúde com base nos dados, ou seja, atuar na qualificação da coleta de dados, assim como na produção de informações sobre as diferenças e iniqüidades no território, considerando inclusive a meta “Saúde das Populações Impactadas por Vieses”.  

Além disso, objetivamente, o sucesso da implementação do Programa pode estar na capacidade do setor de Informação e Educação sobre Equidade Etnicorracial em Saúde desenvolver ações que aumentem o engajamento dos(as) provedores(as) de saúde com a garantia à dignidade humana no ponto do cuidado e o controle dos vieses implícitos.

Na perspectiva bottom-up, um desafio para o setor de Gestão e Planejamento do Programa, mais especificamente, é estabelecer um “painel (dashboard) de situação” (talvez com a ajuda das tecnologias digitais de informação e comunicação) com informações sobre o dia a dia da implementação do Programa e as demandas reais dos grupos alvo (usuários, provedores e gestores) para orientar decisões e ações em tempo hábil.

É preciso também levar em conta que para o sucesso na implementação do Programa, vale destacar a meta “Equipe Resiliente de Provedores(as) de Saúde.” Isto porque, além do racismo institucional há que se considerar os vieses implícitos. E para o controle dos vieses e falta de motivação sanções não são suficientes, o que não exclui a devida responsabilização no caso de dano (accountability sobre o comportamento de classificar a pessoa usuária como “difícil”, por exemplo). O desafio, portanto, é melhorar a satisfação no trabalho por meio de uma cultura institucional baseada em evidência, de incentivos por promoção da equidade em saúde,  experiências de realização de encontros clínicos terapêuticos e reconhecimento profissional pela atuação em saúde da população negra entre outras impactadas por ideologias opressivas, por exemplo.

Por outro lado, como o racismo institucional está nos processos, é necessário que a área técnica também desenvolva uma perspectiva top-down, ou seja, estratégica e tática, de cima para baixo, pela qual, ainda com base em Ferreira et al (2016), a implementação é vista como um processo racional e planejado, enfatizando a gestão, a responsabilização e a uniformidade, bem como a garantia de “sustentabilidade financeira” para implementação do Programa. O enfrentamento e a desconstrução do racismo institucional e demais ideologias opressivas impõem o protagonismo da área técnica para identificação e correção das barreiras ao acesso que podem ser manipuladas nos diversos níveis de governança.

Com base no relato de Ogunlayi (2017) sobre uma experiência exitosa na implementação “top-down” de uma política em larga escala, como é o caso do Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra, visando a equidade em saúde,  mas com o processo colaborativo da perspectiva “bottom-up”, delineio aqui um modelo para a instância de gestão em saúde da população negra:

esquematizando uma instância de gestão em saúde da população negra

De acordo com a Ontario Agency for Health Protection and Promotion (2023), a implementação da política é o estágio entre o estabelecimento de um programa e suas consequências. E se uma consequência do Programa é a desconstrução do racismo institucional no sistema de saúde, estruturar a instância de gestão exige, neste momento, de cada um de nós, desenvolver uma compreensão do racismo institucional oculto nos processos que a Rede de Atenção à Saúde precisa seguir na implementação do Programa.

CTSPN, Equipe Central e Equipes de Apoio InstitucionalColetivos Organizados para Produção do PMSIPN

Segundo Gastão Wagner (2013), um Coletivo Organizado designa aqueles agrupamentos que têm como objetivo e como tarefa a produção de algum bem ou serviço. Neste sentido, tanto o CTSPN quanto a equipe da área técnica do Programa quanto a equipe de apoio institucional, mas não só,  têm metas em comum.

A equipe central é dedicada ao Programa, atuando com a consultoria do Comitê Técnico de Saúde da População Negra. Contudo, uma experiência do(a) paciente isenta de vieses acontece no ponto do cuidado e para o alcance desta meta do Programa, a equipe central precisa estabelecer, segundo Pereira Jr e Campos (2014), uma rede de apoio institucional (equipe local), operando conforme o método da roda (ou xirê?) o qual propicia a produção de valores de uso (equidade em saúde, resiliência da equipe, etc) e a produção dos sujeitos envolvidos no processo (cogestão).

Por sua vez, as equipes de apoio institucional atuam na implementação do Programa, construindo de espaços de equidade em saúde no ponto do cuidado, seja na Atenção Básica, seja na Especializada. Suas principais atribuições são o (1) planejamento ascendente de equidade e inclusão, (2) a educação permanente em saúde da população negra como estratégia de qualificação para o enfrentamento do racismo institucional na gestão e de vieses implícitos no encontro clínico, (3) qualificação do informação em saúde (quesito cor e determinantes sociais), (4) produção de relatórios de equidade e inclusão, (5) fomento às articulações nos territórios, entre outras.

Ananse Ntontan. Símbolo Adinkra representa uma teia que carrega sabedoria, criatividade e as complexidades da vida.

Com base na simbologia Adinkra (Veloso, 2022), escolhi para representar os Coletivos Organizados para Produção do PMSIPN o Ananse Ntontan, por representar uma “teia” que carrega sabedoria, criatividade e as complexidades da vida. E, no meu entender, há uma imensa complexidade na desconstrução do racismo institucional. Além disso, conforme o estudo de Nunes et al (2023), julgo que os Coletivos Organizados para a produção do PMSIPN podem constituir uma “rede rizoma”, pela necessidade da formação de fluxos conectivos do cuidar isento de vieses e da potência do agir coletivo. Tanto a “teia” quanto a “rede” são modelos úteis à gestão do PMSIPN porque ambas têm como referencial o entendimento de que o conhecimento é dinâmico e descentralizado, a integração com diversos serviços, cuidado em equipe interprofissional centrado na pessoa, entre outras características

A mensagem chave é se a “equidade e inclusão em saúde” for um valor, a meta comum a todos e todas que atuam na Rede de Atenção à Saúde não tem como o Programa dar errado. Se ainda não é, precisará ser.

Referências

Cruz, I. C.  da (2013). Que falta faz uma área técnica de saúde da população negra no ministério da saúde!. Revista Da Associação Brasileira De Pesquisadores/as Negros/As (ABPN)5(9), 163–171. Recuperado de https://abpnrevista.org.br/site/article/view/242

Cruz, Isabel. Saúde da População Negra Carioca: regulamentando a Lei 7749/22. NEPAE/UFF. Niterói, 17/05/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2704

Ferreira, V. da R. S., & Medeiros, J. J. (2016). Fatores que moldam o comportamento dos burocratas de nível de rua no processo de implementação de políticas públicas. Cadernos EBAPE.BR, 14(3), 776–793. https://doi.org/10.1590/1679-395129522

Milanezi, J A gestão da saúde da população negra em unidades básicas de saúde. Nexo, 2020. Disponível em https://pp.nexojornal.com.br/academico/2020/A-gest%C3%A3o-da-sa%C3%BAde-da-popula%C3%A7%C3%A3o-negra-em-unidades-b%C3%A1sicas-de-sa%C3%BAde

Ogunlayi F, Britton P Achieving a ‘top-down’ change agenda by driving and supporting a collaborative ‘bottom-up’ process: case study of a large-scale enhanced recovery programme BMJ Open Quality 2017;6:e000008. doi: 10.1136/bmjoq-2017-000008

Campos, Gastão Wagner de Sousa  Um método para análise e cogestão de coletivos. A constituição do sujeito, a produção de valor de uso e a democracia em instituições: o método da roda. São Paulo, editora HUCITEC, primeira edição, maio/2000; quarta edição, 2013.

Pereira Júnior N, Campos GWS. Institutional support within Brazilian Health System (SUS): the dilemmas of integration between federal states and comanagement. Interface (Botucatu). 2014; 18 Supl 1:895-908. Disponível em https://www.scielo.br/j/icse/a/csp7f7gCDRybCTpjg4qZr7n/?format=pdf&lang=pt#:~:text=%C3%89%20um%20m%C3%A9todo%20de%20gest%C3%A3o,de%20sujeitos%2C%20individuais%20e%20coletivos.

Ontario Agency for Health Protection and Promotion (Public Health Ontario), Bodkin A. Eight steps to building healthy public policies. Toronto, ON: King’s Printer for Ontario; 2022.

Veloso, A Tecnologia Ancestral Africana: Símbolos Adinkra. Espaço do Conhecimento – UFMG. Blog do Espaço! 2022. Disponível em https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/tecnologia-ancestral-africana-simbolos-adinkra/

Nunes CK, Olschowsky A, Silva AB, Xavier MS, Braga FS. Saúde mental infantojuvenil na atenção básica. Rev. Enferm. UFSM. 2023 [Access at: 21/07/2023]; vol.13, e8: 1-18. DOI: https://doi.org/10.5902/2179769271914

Como citar:

Cruz, ICF da Considerações sobre uma instância de gestão em Saúde da População Negra. NEPAE/UFF. Niterói, 14/07/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3301

Translate »
Skip to content