Qual a razão de realizar vigilância em saúde da população negra? Qual a razão de monitorar os resultados de saúde, contrastando os dados sobre a população negra com os do grupo populacional hegemônico? A figura a seguir pretende responder.
Portanto, inovação em saúde da população negra é a desconstrução do racismo institucional nos processos de cuidar e gerir na Rede de Atenção à Saúde (RAS).
Neste sentido, o Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra-PMSIPN (lei municipal Lenora Mendes Louro, 7749/2022) tem diretrizes que precisam de dados para serem devidamente implementadas e avaliadas, visando a equidade racial nos melhores resultados epidemiológicos, bem como a experiência do(a) paciente isenta de discriminação racial [1].
Vale destacar que, no seu Art. 2º, o Programa Municipal de Saúde Integral para a População Negra tem como diretrizes: a identificação das necessidades de saúde da população negra e a criação de instrumentos de gestão e indicadores para monitorar e avaliar o impacto da execução do programa.
A sociedade carioca aprovou o PMSIPN por reconhecer os vieses discriminatórios no encontro clínico, as disparidades étnico-raciais e o racismo institucional como determinantes sociais. Igualmente, reconheceu a necessidade de ter o Sistema Único de Saúde (SUS) com foco na pessoa e sua diversidade. Para tanto, é indispensável a gestão baseada nos dados de saúde para identificação e correção das iniquidades étnico-raciais no ponto do cuidado. Ao eliminar as diferenças injustas e evitáveis no acesso ao SUS podemos garantir serviços não só justos como isentos de vieses para todas as pessoas.
Vigilância em saúde da população negra é uma área de conhecimento desenvolvida há tempos pelo Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN) do Município do Rio de Janeiro, criado pela resolução 1298 de 10 de setembro de 2007, que sempre buscou obter e analisar os dados desagregados pelo quesito cor para propor as estratégias de implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra-PNSIPN na cidade [2].
O CTSPN chegou inclusive a criar o Grupo de Trabalho Dados de Cidadania para a mensuração, em tempo real, da iniquidades em Saúde da População Negra, com as seguintes atribuições: 📍colaborar na qualificação da coleta do quesito cor, assim como de outros dados sensíveis (orientação sexual, por ex), de modo que a tomada de decisão seja eficiente e eficaz no enfrentamento das desigualdades em saúde; 📍analisar de forma desagregada e multivariada o quesito cor e demais dados estratificadores de equidade[3] (idade, sexo, gênero, renda, escolaridade e localização geográfica) que são comumente usados para medir as desigualdades em saúde, incorporando o princípio da interseccionalidade no processo de saúde-doença e no ciclo vital; 📍usar tanto medidas absolutas (com base na diferença) e relativas (com base na taxa) para quantificar as desigualdades entre os grupos populacionais, fornecendo uma descrição abrangente, caso presente, da desigualdade em saúde, evitando vieses de notificação; e📍revisar a literatura e os dados para considerar o contexto e o impacto dos achados, assim como sua significância estatística.
Com a colaboração do Prof. Dr. Alexandre Sousa da Silva (UNIRIO) e sua orientanda à época, a enfermeira Fernanda Cardoso, o GT Dados de Cidadania chegou a criar um dashboard experimental (https://rpubs.com/dadosecidadania/847345) com dados de gestantes e covid-19 e apresentou para a comunidade o trabalho.
Infelizmente, o trabalho do GT Dados de Cidadania não avançou em razão, principalmente, do custo e da escassez de profissionais com esta expertise para colaborar. Por outro lado, os setores de Vigilância em Saúde embora tenham incorporado ao trabalho a análise de dados em tempo real, a meu ver, não realizam análises multivariadas, ou seja, não focalizam o impacto dos determinantes sociais no processo saúde doença, e tampouco subsidiam a gestão no sentido de corrigir iniquidades raciais e de gênero existentes.
Vale repetir: o PMSIPN é uma solução inovadora. Portanto, sua implantação, implementação, monitoramento e avaliação requerem, no mínimo, um fazer diferente e melhor.
Assim, o Laboratório de Inovação em Saúde da População Negra enquanto um espaço onde gestores(as), profissionais, controle social, entre outros, podem propor solução criativa para os desafios de políticas e programas com foco na desconstrução do racismo institucional, promove a seguinte Oficina:
O Laboratório de Inovação em Saúde da População Negra (LISPN) convidou para a capacitação os especialistas na área são:
– Marcos V. da S. Cordeiro, Assessoria de Equidade Étnico-Racial em Vigilância em Saúde/ Ministério da Saúde;
– Izaide Ribeiro de Faria, Sanitarista/ Ministério da Saúde/Secretaria de Estado de Saúde-CTSPN.
O público alvo da Oficina são gestores(as), profissionais de TI, profissionais de Vigilância em Saúde, bem como o controle social de política e programa em saúde da população negra. Uma vez que a gestão em saúde baseada em dados de equidade racial e a desconstrução do racismo institucional devem ir além da capital, a Oficina online, sob minha coordenação, foi oferecida para os municípios de Estado do Rio e de outros estados. Na figura a seguir, o perfil dos(as) inscritos(as).
Dentre as pessoas inscritas, conforme a figura acima, a maior parcela tem vinculação com a gestão, sendo seguida pela assistência e o controle social. Cabe destacar a ausência de representação do judiciário e do legislativo.
No momento da inscrição foi perguntado se havia capacitação continuada para a coleta do quesito cor, um dado sensível, para profissionais e trabalhadores(as) no ponto do cuidado de saúde, sendo obtida as seguintes respostas na figura abaixo.
A maior parcela respondeu que não tinha informação a respeito, enquanto que uma parcela relevante respondeu que não. Somando as duas, avalio que a capacitação sobre a coleta do quesito cor (e experiência de discriminação) precisa de uma maior atenção por parte da gestão em políticas e programas que impactam tanto a população negra quanto demais grupos étnicos.
Quanto aos dados desagregados sobre o quesito cor e informação sobre disparidades raciais, bem como o alcance ou não das metas específicas sobre saúde da população negra e enfrentamento do racismo no ponto do cuidado, na figura a seguir está o gráfico que sintetiza as respostas.
Com a observação da figura acima, confesso uma grata surpresa com a informação de 17% das pessoas inscritas de que em seus municípios ou estados ou unidade de saúde (São Paulo, Petrópolis, Vassouras, Niterói,RS, HFB, CAP 2.1, APP SMS RJ) os relatórios de gestão já incluem os dados do quesito cor como informação necessária à implementação de políticas com foco na população negra.
Nesta Oficina, o objetivo é capacitar sobre gestão baseada em dados de saúde da população negra, analisando esses dados e pensando em possíveis soluções de problemas como o racismo institucional ou estratégias de equidade racial em todos os programas de saúde.
Citizen Intelligence em Saúde da População Negra:
porque nosso negócio é equidade racial nos melhores resultados
Business Intelligence (BI) trata do compartilhamento de informações nas organizações, visando a tomada de decisões com base nos seus dados [4]. Paralelamente, julgo necessário que o Controle Social tenha sua “Citizen Intelligence” [5].
Citizen Intelligence porque se faz necessária uma nova base de dados centrada nos determinantes sociais da saúde nos territórios, tais como o racismo e o “misogynoir” (experiência ou percepção de discriminação, navegação da pessoa negra pelo SUS, etc), assim como nas necessidades e ativos das comunidades locais. Um dashboard que apresente em tempo real dados sobre disparidades raciais, etárias e de gênero, entre outras, para avaliação do PMSIPN com base no desempenho quanto à meta de experiência do(a) paciente isenta de vieses opressivos. Igualmente, Citizen Intelligence com uma base de dados robusta para definir prioridades e fornecer insights valiosos sobre a sustentabilidade financeira do PMSIPN, por ex.
Vale observar que a base de dados para Citizen Intelligence em Saúde da População Negra deve ter dados sensíveis (quesito cor, experiência de discriminação, orientação sexual, religiosidade, entre outros) e isto exige de quem coleta este dado habilidade em entrevista compassiva e entendimento do valor deste dado para o enfrentamento de ideologias opressivas no ponto do cuidado.
Por exemplo, com base no Painel da Equidade em Saúde a seguir, você confiaria nas informações para a tomada de decisão quanto a elaborar um relatório sobre o número de pessoas negras em situação de rua?
O dashboard acima ao menos para mim não apresenta informações nas quais eu possa confiar. Por exemplo, tradicionalmente, as mulheres em situação de rua são minoria e, segundo este gráfico, são a maioria das pessoas cadastradas. Interessante! Quanto ao quesito cor, o qual muitos(as) trabalhadores(as) da área da saúde referem ser constrangedor perguntar sobre, está preenchido e mostra no gráfico uma parcela significativa de pessoas asiáticas em situação de rua. Interessante! Se muitos(as) consideram constrangedor perguntar como a pessoa se autodeclara quanto à cor, pelo que mostra o gráfico, não parece haver dificuldade para perguntar (e explicar) sobre orientação sexual e identidade de gênero. Muito interessante!
Ainda que estudos apontem o aumento da completude dos dados sobre quesito raça/cor nas bases do Sistema de Saúde, a análise do painel acima evidencia que completude é bom, mas não basta. Para a tomada de decisão na área da saúde da população negra, é preciso ter certeza de que o dado da categoria “quesito cor” corresponde ao fato: autodeclarar-se preto, pardo, branco, amarelo ou indígena.
É preciso desenvolver o “olhar interseccional“, ou seja, buscar além do contraste entre pretos e pardos comparados a brancos, assim como do senso comum da “pobreza” como único determinante social, incluindo na análise categorias como emprego, moradia, transporte, identidade de gênero, religiosidade, pertencimento à comunidade tradicional, entre outras.
—Desafio: análise estatística conclusiva na gestão de dados em saúde da população negra “Quais os fatores que resultam nesse resultado adverso?” Por ex, a regressão linear simples permite modelar uma relação entre dois conjuntos de variáveis (no caso o quesito cor e anos de estudo). Vale dizer que a linha de regressão mostra se o relacionamento entre os conjuntos é forte ou fraco.
A interseccionalidade é um referencial do PMSIPN porque a população negra não é homogênea, consequentemente, as diferentes formas de desigualdades e opressões se combinam para impactar negativamente a pessoa negra no processo saúde doença.
Igualmente, interessa à implementação do PMSIPN, dados e informações sobre trabalhadores(as), gestores(as) e equipe interprofissional de saúde, tais como: disponibilidade de pessoal, qualificação profissional e equipamento; despesas de treinamento para pessoal; treinamentos e adesão ao PMSIPN, entre outros que permitam avaliar a qualidade do cuidado de saúde prestado.
Quanto à experiência do(a) paciente pertencente à população negra, ao PMSIPN interessam dados e informações sobre: ✔️tempo de espera; ✔️percepção de discriminação; ✔️eventos adversos; ✔️comunicação profissional-paciente; ✔️taxa de reinternação por prestador(a); ✔️disponibilidade de informações repassadas aos pacientes e ✔️infraestrutura (incluindo número e qualificação das equipes), entre outros.
Isto posto, antecipo que a Oficina Vigilância em Saúde da População Negra deverá trazer grandes contribuições à implementação de políticas e programas seja no âmbito municipal, seja no estadual.
Antecipo inclusive algumas sugestões:
👉🏾Capacitação continuada sobre o quesito cor, assim como supervisão da coleta e auditoria dos dados.
👉🏾 Relatórios de gestão com dados desagregados pelo quesito cor (pretos e pardos) e, sempre que possível, com análise multivariada sobre os determinantes sociais da saúde, tal como o racismo e “misogynoir”[6] [7].
👉🏾Desenvolvimento de plataforma Business Intelligence (ou Citizen Intelligence) em Saúde da População Negra, isenta de vieses raciais e de gênero, que propicie o monitoramento do PMSIPN, bem como a tomada de decisões informadas tanto na gestão quanto no cuidado de saúde, aumentando a transparência na governança e cultivando uma cidadania engajada e bem informada.
O vídeo da Oficina
Referências
[1] Cruz, Isabel. Saúde da População Negra Carioca: regulamentando a Lei 7749/22. NEPAE/UFF. Niterói, 08/06/2024. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2704
[2] Cruz, ICF da Breve panorama sobre a vigilância em saúde da população negra. NEPAE/UFF. Niterói, 16/06/2023. Disponível em https://nepae.
[3] Canadian Institute for Health Information. In Pursuit of Health Equity: Defining Stratifiers for Measuring Health Inequality — A Focus on Age, Sex, Gender, Income, Education and Geographic Location. Ottawa, ON: CIHI; 2018. https://www.cihi.ca/sites/default/files/document/defining-stratifiers-measuring-health-inequalities-2018-en-web.pdf
[4] Torres DR, Cardoso GCP, Abreu DMF de, Soranz DR, Oliveira EA de. Aplicabilidade e potencialidades no uso de ferramentas de Business Intelligence na Atenção Primária em Saúde. Ciênc saúde coletiva [Internet]. 2021Jun;26(6):2065–74. Available from: https://doi.org/10.1590/1413-81232021266.03792021
[5] Cruz, ICF da Structured Query Language (SQL): exercitando “Citizen Intelligence”. NEPAE/UFF. Niterói, julho, 2022 Disponível em https://nepae.uff.br/?p=2485
[6] Cruz, ICF da Misogynoir: uma introdução ao tema. NEPAE/UFF. Niterói, 14/10/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3381
[7] Dantas, M. N. P., Aiquoc, K. M., Santos, E. G. de O., Silva, M. de F. dos S., Souza, D. L. B. de, Medeiros, N. B. M. de, & Barbosa, I. R. (2019). Prevalência e fatores associados à discriminação racial percebida nos serviços de saúde do Brasil. Revista Brasileira Em Promoção Da Saúde, 32. https://doi.org/10.5020/18061230.2019.9764
Como citar:
Cruz, ICF da Laboratório de Inovação: vigilância em saúde da população negra. NEPAE/UFF. Niterói, 08/09/2024. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3935