Qual a razão de você “olhar” desigualdades, mas não conseguir “ver” as disparidades, nem tampouco atuar no desmantelamento da iniquidade sistêmica nos resultados de saúde?
A Associação Brasileira de Enfermagem em seu 74º Congresso Brasileiro de Enfermagem (74º CBEn), propôs o tema: Diversidade, equidade, inclusão e acessibilidade na produção e disseminação do conhecimento em Enfermagem para o qual tive a honra de ser convidada (e aceitei com gratidão) com o propósito de apresentar as lentes do Brasil em uma mesa com participantes dos Estados Unidos, Costa Rica e Canadá.
Cruz, ICF da “Brazil” e suas lentes: para não ver sua gente. In: Congresso Brasileiro de Enfermagem, 74, 2023.
Em um CBEn, realizado na UERJ, na cidade do Rio de Janeiro, não poderia deixar de prestar uma homenagem a uma grande enfermeira e pesquisadora: profa. Dra. Iraci dos Santos.
Em razão da luta diuturna dos movimentos sociais, em especial do movimento feminista negro, as iniquidades nos resultados de saúde, o acesso ao cuidado sem qualidade, o não reconhecimento da pessoa e sua diversidade no encontro clínico, assim como a exclusão dos grupos populacionais impactados por ideologias opressivas nos espaços de poder em uma sociedade, em princípio, democrática, são agora relutantemente percebidos pelas instituições e corporações de saúde como uma demanda da agenda das políticas de saúde também.
Com base em referenciais filosóficos dos movimentos sociais e da contribuição específica do feminismo negro sobre as interseccionalidades opressivas, as instituições, corporações e profissionais de saúde reconhecem que veem a realidade e pacientes através de “lentes”. E de todas as lentes disponíveis para a opressão de um ser humano por outro, inclusive na prestação de serviços de saúde, destaco aqui, com base nas minhas vivências: o patriarcado (a raiz de todas as opressões). Destaco também, o “misogynoir”, uma ideologia fundada no colonialismo escravocrata e herdada pelo capitalismo.
Há mais: misoginia, racismo, LGBT+fobia e, por que não? corporativismo na área da saúde. Então, olhar a realidade e pacientes através destas lentes causa o quê?
Na área da saúde, a misogynoir é a causa da disparidade na razão de morte materna quando se compara a taxa de mortalidade de mulheres negras (pretas e pardas) com a de mulheres brancas. A misoginia, por sua vez, é responsável pela elevadíssima mortalidade de mulheres por uma causa absolutamente natural: parto!!!
Estas lentes: corporativismo, patriarcado, racismo, misoginia, entre outras, não permitem a quem as usa ver a pessoa que está diante de si ou à qual presta um serviço como um ser humano, como alguém que tem dignidade intrínseca à sua existência.
Não usar estas lentes das ideologias opressivas no cotidiano, demanda aprendizado e prática, assim como compromisso e comprometimento com equidade e inclusão das pessoas nos sistemas sociais.
Interseccionalidade não é só para descrever as iniquidades estruturais identificadas nas pesquisas. Iniquidades tanto quem oprime, quanto quem é oprimido(a) já conhecem. Interseccionalidade é uma metodologia para quem luta cotidianamente pela desconstrução do patriarcado, da misoginia, do racismo e de qualquer outra forma de opressão nos processos institucionais e nas relações interpessoais. Agora, se você não é essa pessoa, então temos um problema…
Isto posto, dentre os grupos populacionais impactados por ideologias opressivas, destaco, por conta de minha atividade na defensoria e no ensino de saúde, as seguintes populações:
👉🏾População Negra
👉🏾População do Campo, Florestas e Águas
👉🏾População LGBT+
👉🏾População em Situação de Rua
👉🏾Povos Romani/Ciganos
Nestas últimas décadas, os movimentos sociais e o controle social do Sistema Único de Saúde (SUS) conquistaram pelas vias democráticas as Políticas de Promoção da Equidade em Saúde, ou seja, leis, programas e ações governamentais de saúde, no âmbito do SUS, com recursos orçamentários para promover o respeito à pessoa e sua diversidade no encontro clínico, bem como garantir o acesso da população a serviços de qualidade, com equidade e em tempo adequado ao atendimento das necessidades de saúde, aprimorando a política de Atenção Básica e a Atenção Especializada.
Recentemente, no site do Ministério da Saúde, está disponibilizado o Painel de Monitoramento da Equidade em Saúde. A ferramenta contém dados de cadastro e atendimento na Atenção Primária em Saúde das populações específicas e em situação de vulnerabilidade. Cabe observar contudo que a coleta (ou não) de dados sensíveis como o quesito cor, por exemplo, é influenciada pelo racismo institucional o que, por fim, compromete a qualidade da informação. De qualquer modo, como boa ou má informação, a gestão com referencial em ideologias opressivas só tem compromisso com o grupo hegemônico e o lucro.
No ponto do cuidado, quando pessoa, família, comunidade e população são percebidas por gestores(as) e profissionais de saúde através destas lentes: corporativismo, patriarcado, racismo, misoginia, entre outras, isto pode resultar em um diagnóstico potencial:
Em tempos de obscurantismo, não é demais reiterar que a dignidade é um princípio fundamental do ser humano. E, assim como tenho direito à dignidade, igualmente, tenho o dever de garantir a dignidade inerente à pessoa, por meio da não violação da sua integridade, seja física, psíquica ou moral, e por meio da não exploração da sua vulnerabilidade, seja esta intrínseca a todo ser humano ou causada por condições individuais, sociais ou ambientais.
Assim sendo, entendo que para formular o julgamento clínico sobre risco de comprometimento da dignidade humana em pessoa, família, comunidade ou população impactada por ideologias opressivas é necessário o desenvolvimento na equipe interprofissional de saúde de competência estrutural (Neff et al, 2020) de modo que esteja preparada não apenas para reconhecer, mas também responder ao impacto de fatores estruturais que afetam negativamente a saúde do(a) paciente e a cultura das instituições de saúde.
Além disso, como nenhum diagnóstico deve ficar sem ao menos um tratamento, utilizo aqui a Roda de Intervenções, com destaque para a defensoria como uma das soluções possíveis para o enfrentamento das ideologias opressivas que comprometem os resultados de saúde.
Defensoria (advocacy) que é o ato de promover e proteger a saúde de pessoas e comunidades “através da colaboração com as partes interessadas, relevantes, facilitando o acesso a serviços sociais e de saúde, envolvendo ativamente os principais tomadores de decisão para apoiar e promulgar políticas para melhorar os resultados de saúde da comunidade” (Minnesota, 2019).
Julgo que a defensoria, na área da saúde, é a expressão da competência estrutural de profissionais e gestores(as) de saúde porque mostra a expansão de sua consciência crítica para as estruturas econômicas e sociais subjacentes à saúde e ao processo do cuidar. Igualmente, avalio que a competência estrutural não é aprendida exclusivamente nos bancos escolares e a considero uma contribuição do feminismo negro às profissões e serviços.
Isto posto, considero importante apresentar um estudo de caso sobre Competência Estrutural em Saúde da População Negra.
O desafio agora, com a aprovação da lei Lenora Mendes Louro, no. 7749/2022, que criou o Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra (PMSIPN), na cidade do Rio de Janeiro, é o “policy process”, ou seja, como a Assessoria Especial em Saúde da População Negra, com locus no Gabinete da SMS, deve atuar, com Comitê Técnico de Saúde da População Negra (CTSPN), para cumprimento de sua maior finalidade: desconstruir o racismo institucional na Rede de Atenção à Saúde (RAS), implementando o PMSIPN.
A gestão em saúde tem mandato dos movimentos sociais, sendo assim, as novas demandas impostas aos provedores são equidade e inclusão (Lennon, 2023). Neste sentido, para garantir saúde da população negra, por exemplo, as instituições de saúde precisam mudar estruturalmente, revisar seus processo e linhas de cuidado, inclusive na área de saúde digital, para abordar os determinantes sociais da saúde, tais como racismo e “misogynoir”. Igualmente, devem incluir nos seus modelos de cuidado medidas preventivas para promover o bem-estar dos grupos populacionais sob seus cuidados (Povos de Terreiro, Quilombolas e Afrodescendentes/Imigrantes), em especial e da população como um todo. Por sua vez, a experiência do(a) paciente isenta de vieses, tais como racismo e misogynoir, acontece em uma cultura institucional baseada no respeito mútuo, na confiança, na comunicação compassiva e no envolvimento entre pacientes e profissionais de saúde.
As ações do Programa Municipal de Saúde Integral da População Negra têm o potencial de aumentar encargos administrativos (revisão de linhas de cuidado, por ex) e suscitar constrangimento sobre o desempenho dos(as) provedores(as), gestores(as) e trabalhadores(as). Na certeza de que uma cultura institucional isenta de vieses e assédios é o melhor ambiente tanto para obter realização no trabalho quanto para a prestação do cuidado de alta qualidade é que o PMSIPN foca na resiliência da equipe interprofissional de saúde e no seu bem-estar. Assim como os(as) pacientes, é fundamental que profissionais, gestores(as) e demais trabalhadores(as) da saúde vejam na implementação do PMSIPN suporte para os cuidados colaborativos, ou seja, em equipe, atuando no âmbito de seus papéis e no máximo de suas expertises na abordagem das disparidades em saúde e nos melhores resultados terapêuticos para os(as) pacientes.
Além de ser baseado em evidência, quando o cuidado centrado na pessoa e sua diversidade, a saber: idade, etnia, gênero, raça, entre outros determinantes sociais, é uma meta institucional, busca-se adequar tratamentos com base na medicina de matriz africana, por exemplo, e intervenções às necessidades individuais, levando a melhores resultados de saúde.
No que se refere ao melhor uso dos recursos, o PMSIPN busca garantir o acesso aos cuidados de alta qualidade na Rede de Atenção à Saúde (RAS), incentivando as instituições de saúde a melhorar os resultados terapêuticos tanto para a população negra quanto para os demais grupos populacionais ao reduzir suas taxas de morbimortalidade, ao identificar áreas de ineficiência, ao reduzir o desperdício e otimizar, principalmente, a alocação de recursos humanos no cuidado direto à pessoa.
Isto posto, tendo compartilhado com você minha vivência em defensoria em saúde da população negra e, quem sabe, demonstrado a competência estrutural pró direitos humanos adquirida ao longo destes anos de trabalho como enfermeira, retomo a pergunta inicial e sintetizo na resposta alguns tópicos que considero essenciais. Espero que você identifique outros e sinta-se à vontade também para discordar.
Em síntese, qualquer lente compromete o encontro clínico. Tal como na astronomia, recomenda-se que primeiro se aprenda a observar a olho nu.
Olhos no olhos é mais que uma demanda do(a) paciente, é um indicador da qualidade do acesso ao cuidado de saúde. Assim, modifiquei a pergunta inicial para poder avançar melhor na minha síntese sobre o “Brazil e suas lentes” que comprometem o encontro clínico com pessoas pertencentes a grupos populacionais impactados por ideologias opressivas.
Por fim, apontando para a lua: “Olhe nos meus olhos, sou ser humano” – é a principal demanda do(a) paciente e condição básica para o encontro clínico terapêutico isento de vieses. Compaixão clínica é a competência profissional necessária. Além disso, é desejável que você atue na defensoria em saúde das populações e desenvolva sua competência estrutural por equidade e inclusão, se ainda não o fez. A bem da verdade, no que se refere às instituições de saúde, salvo melhor juízo, a responsabilidade por criar e garantir uma cultura institucional isenta de vieses (e crimes deontológicos ou civis) é dos(as) gestores(as) principalmente.
Mas, como todos e todas têm o dever profissional de, no mínimo, praticar de modo a garantir a dignidade humana e o respeito à pessoa no cuidado de saúde. Tudo o que aqui foi apresentado, não é novidade. E agora que você sabe?
Referências
Cruz, ICF da Roda de Conversa com Gestantes e Roda de Intervenções em Saúde. NEPAE/UFF. Niterói, 24/06/2023. Disponível em https://nepae.uff.br/?p=3060
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Como citar:
Cruz, ICF da O “Brazil” e suas lentes: para não ver sua gente. NEPAE/UFF. Niterói, 14/11/2023. Disponível em http://nepae.uff.br/?p=3426